CONVERSA FIADA

Advertência: este texto foi produzido sem cumprir as normas gramaticais de colocação, regência, concordância e a forma correta das palavras, a fim de caracterizar a sonoridade do falar dos meus conterrâneos na comunicação coloquial, simples, direta, inculta, mas melodiosamente linda.

Amélia - Sadi, tu tava aonde que num ouvisse esse telefone chamando? Essa é a terceira vez...

Berenice - Tava no trono, rapaz. Essa peste toca o dia todo e quando a gente atende é uma vozinha de rapariga desprezada querendo que a gente compre até a mãe de calô-de-figo.

A - Ah! Bom. Eu pensei que tu tivesse no zatizapi. Eu tô ligando pra dá meu número novo. O ladrão levou meu celular, aquele fi duma égua...

B – Eu que não quero uma quizila dessa na minha vida não. Essa peste fixa já dá um trabalhão, num quero não, um troço desse, não. E tu desse parte?

A - Pra quê? A policia não pode fazer nada não. É ladrão de menor, conhecido que age nos ônibus... um bota o revolver na cabeça do motorista e o outro sai recolhendo o roubo. Se alguém reagir eles matam o motorista.

B - É mermo mulher, esse mundo não tem mais jeito não. E como estão as coisa por aí?

A - Do mesmo jeito que por aí, menina. Bandido para todo lado, a polícia proibida de agir e a política cada vez afundando mais o país. E o diacho é que a gente num tem a quem reclamar. Antigamente, vó Benvinda dizia, “vamo reclamar ao bispo”, mas o bispo virou comunista e o mundo está de cabeça pra baixo.

B - Diz que o bandido que Teobaldo vive lambendo o fundo mandou desligar as bombas da transposição para agradar ao cangaceiro amigo dele que tem mais de setenta caminhão pipa, modi ele apoiar as merdas que vão fazer daqui pra frente.

A – Sadi do céu, que sacanagem da gota! Eu ouvi falar, menina. É muita ruindade junta, né não? E Léo, rapaz? Como é que fica o financiamento que ele fez pra aquele negócio de balneário em Jati, que madrinha Toinha falou que ele tinha feito?

B – Eu ouvi Jonas dizer à mãe que ele vai cancelar tudo. Já basta o prejuízo que ele teve com a febre aftosa. Teve que sacrificar as vacas de leite todinhas.

A – E ele não vacinou os bicho não, foi?

B – Vacinou, mas um vizinho dele relaxou na vacina e parece que a vacina tava vencida e os bicho adoeceram tudinho...

A – É muito azar prum cabra só, mas como dizia pai, todo castigo pra corno é pouco e Sarita não faz economia, principalmente depois que ficou galega com aquele pixaim pintado de louro.

B – É menina, eu não sei como Leo aguenta aquilo. Mas mudando de pau para cacete, ontem foi feriado aí, num foi?

A – Foi aniversário da cidade. Quatrucento e tantos anos. Eu até me lembrei de seu Floriano, compadre de pai. Oh! Sadi, tu se lembra que ele veio comprar um não sei o quê e voltou encantado com a festa dos quatrocentos anos de S. Paulo?

B – E tem no mundo quem possa esquecê? Ele falava dessa festa o tempo todo antes de morrer, do foguetório, das bandas de música, cantava até o dobrado. “São Paulo, meu São Paulo, viva os quatrucentão...”

A – Sadi, tu se lembra da raiva que ele teve quando Zeca da farmácia disse que ele precisava viver mais de oitocentos ano?

B – Foi porque ele disse que nunca mais na vida ia perder a festa dos quatrocentos anos da fundação de S. Paulo...

A – Eita! cabra burro da peste. Onde já se viu alguém fazer o mesmo aniversário várias vezes.

B – Oxe! Pode sim, Marisa mermo já fez 21 anos umas cinco vezes seguida. Qué vê? Pergunta a ela, quantos anos ela tem, pra tu vê se ela num vai dizê que tem 21 aninhos...

A – Mulhé, tu tem uma língua ferina do cão, zulivre de eu sê tua inimiga!

B – Mas né não? Não sei pra quê escondê a idade. Basta olhar pras mão e pra cara cheia de prega. Marisa então, que é branquinha feito macaxeira, a cara dela tá parecendo saia plissada de tanta prega que tem.

A – Ói, anota aí meu telefone novo. Já chega de conversa por hoje. Vou cuidar do almoço e depois vou prá reunião na escola de Juninho. Acho que ele aprontou outra vez...

B – Oxe! Menina, tu mora em S. Paulo, pede o almoço pelo aifudi. Aproveita as oportunidade que não tem nesse fim de mundo que eu moro.

A – Zulivre d’eu comê essas porcarias. Pinto é que gosta de comer merda e também não dei na minha mãe com um quarto de bode.

B – Pera aí um tantinho queu vô vê se acho papel e lápis. Coisa difícil de se achar nessa bagunça aqui de casa. É mais fácil achar rastro pé de cobra ou retrato de cabelo de freira...

GLOSSÁRIO

Calô-de-figo = vitiligo, acreditava-se que era provocado pelo aumento da temperatura no fígado.

Da gota = gota serena, cegueira progressiva por glaucoma

Jati = cidade cearense

Macaxeira = aipim, mandioca

Modi = a fim de

Ói = olha como vocativo, chamar a atenção

Pera = espera

Plissada = plissé, técnica de dobras permanentes em tecido

Quizila = aversão espontânea, irracional e gratuita por alguém ou algo

Rapaz = tratamento íntimo comum aos dois sexos

Sadi = apelido familiar de Berenice, sem causa justa como sempre acontece.

Trono = aparelho sanitário.

Zulivre = aglutinação de “Deus o livre” que pode ser usado em benefício próprio