AS PAÍNAS CRUZADAS

AS PAÍNAS CRUZADAS

Autores: Moyses Laredo e Ivan Campos Moreira

O conflito da década de 30 no Líbano, que ceifou a vida de seus pais, seis anos depois já crescidos, fizerem os irmãos Kaled (nome fictício) fugirem de sua terra natal. Embarcaram como tantos outros com destino a América do Sul, quanto mais distante melhor, disseram um para o outro. Dos muitos que fugiram, uns se dispersaram no sul, outros, se embrenharam na floresta amazônica, aproveitaram o incentivo do governo do Brasil no esforço de guerra, isso já na década de 40, e foram trabalhar no corte de seringas como tantos outros brasileiros vindos do nordeste, integraram-se aos famosos soldados da borracha. Ao chegarem aqui, foi um desespero, tudo diferente, parecia fazer parte dos seus livros de história da época do descobrimento, muito mato, pessoas nuas da cintura para cima, altas temperaturas com umidades excessivas que os faziam tossir constantemente, sem saber o motivo, pensaram até ter contraído a chamada peste branca, doença do peito, ou tísica, hoje conhecida como tuberculose, pois era muito comum no navio que vieram amontoados, devido as condições precárias no porão onde dormiam, não conheciam a rede, suas camas eram suas próprias bagagens. Mas não, logo deixaram de tossir, era afinal a adaptação a um país tropical com o ar “molhado” (alta umidade). Mas a principal barreira mesmo foi a língua, nada parecido, tinha apenas algumas palavras que suas pronúncias eram conhecidas, tais como: café, arroz, algodão, girafa, divã, berinjela, acelga, alfazema, javali, azul, álgebra, alfaiate, alambique, azeitona, damasco, tamarindo, limão. Todas elas de origem árabe, por isso acharam que seria fácil aprender a língua dos locais.

A ânsia misturada com a vontade de mudança era tanta, que conseguiram um amigo seringueiro para ensinar-lhes algumas palavras, ele apontava na direção do objeto e assim foram aprendendo a palavra, ensinamento meio indutivo, mesmo precário puderam se comunicar. Aos poucos o tempo os fez superar todas as adversidades, conseguiram falar, mas sempre com muita dificuldades com os artigos definidos e indefinidos, nunca acertavam se era masculino ou feminino, diziam “o canoa”, “meu casa”.

Tudo que auferiam com seus trabalhos era em conjunto, trabalharam duro para acumular uma pequena quantia que somada com o que puderam trazer de seus bens vendidos no Líbano, puderam comprar “um canoa grande”, quase um batelão. O medo de se perderem em conflitos de família, motivaram a fazer uma jura entre si, ainda no Líbano, antes de viajar para o velho mundo, o juramento era de que nenhum deles se amancebariam com nenhuma mulher nesse fim de mundo, assim, não haveriam riscos de se perderem por aqui, pois suas primas os aguardavam no Líbano como promessa de casamento feitos pelas suas famílias, assim ditava os costumes.

Com a canoa grande sem motor, tiveram que fazer duas painas (remos dos cabos grandes, parecidos com o que os pizzaiolo usam para colocar ou retirar as pizzas do forno). Em nossa região são também muito usadas em "catraias". Nos barcos de regatões, precisam ser bem maiores, mais alongadas e pesadas, exigem muita força física para movimentá-las.

Com a canoa pronta, tainas no jeito, remaram dois dias para alcançar um flutuante na embocadura do rio, compraram de mercadoria o que o dinheiro e a canoa deram, encheram-na de produtos variados, de anzol a poronga (lamparina que os seringueiros usam na cabeça para percorrer as estradas da seringa na floresta amazônica), tinha de tudo e assim, remando, subiam e desciam os rios, fazendo "mascates" com o ribeirinhos, vendendo ou trocando mercadorias se tornaram regatões (regatear os preços, questionar ou insistir para obter preço mais baixo, pechinchar). Com muitos esforços e habilidades foram crescendo e ficando bem de vida, para os padrões locais já eram considerados ricos, ao ponto de comprarem um barco maior a motor e até fundarem uma pequena empresa comercial. Já nesta condição, bem na curva de um rio, lá compraram suas terras por onde quem passasse os veria. Construíram uma bonita casa de morada no ponto mais alto, batizada de casa grande e um grande armazém, mais próximo do porto, onde estocavam as mercadorias que aviavam (preparar, despachar) nas negociação com os ribeirinhos e seringueiros entrava também as pélas de borrachas (látex defumado por coagulação em forma de bolas compridas).

Passaram a ter empregados, o comércio ia de vento em popa, ficaram conhecidos como os “brimos”, eram honestos e nunca exploravam ninguém. Na entrada da casa grande, procuraram um local onde todos avistassem da curva do rio, lá colocaram em destaque e em forma de "x", as duas painas, que representavam o símbolo de suas lutas e determinações.

Entre os empregados da casa grande, trabalhava uma boliviana de pouca idade, de feições finas, cabelos longos e sedosos, muito “arrumada” (bem feita de corpo), pela qual, o irmão mais novo, logo se enfeitiçou e veio a ter um romance tórrido com ela, às escondidas do seu irmão é claro. Desse caso, resultou que a boliviana engravidou. As coisas complicaram para este irmão, visto que entre eles ainda vigorava o tal juramento, coisa que prezavam muito em suas culturas. Por certo tempo, procurou esconder de seu irmão mais velho, entretanto, vendo que já não ser possível, todos já comentavam, até porque a boliviana estava com o “bucho na goela” (barrigão) como assim era o dizer local. Tomou coragem resolveu lhe contar, foi logo se adiantando, pedindo perdão ao irmão e dizendo que não resistiu, e que tudo foi mais forte do que ele, e que também havia se afeiçoado muito por ela e aqui queria se casar. Seu irmão ouviu com espanto de surpresa, fechou a cara muito sério e com o dedo em riste balançando a poucos centímetros do seu nariz, lhe fez lembrar do juramento que haviam feito no seu país de origem, lembrou-lhe das primas que estavam a esperar por eles, então tomou a decisão como o irmão mais velho, que também era herança de sua cultura, o irmão mais velho tem autoridade sobre os mais novos. Disse-lhe que deveria manda-la embora imediatamente e ponto final. O irmão mais novo muito desolado, engoliu tudo em seco, saiu do encontro muito abalado, subiu apressado para seu aposento, foi se deitar, pois já era tarde, a conversa tinha levado mais tempo do que esperava.

No silêncio da mata, já noite alta, ouviu-se um clarão e um grande estampido vindo da casa grande, o som se fez ecoar por toda floresta. O irmão mais velhos, ainda as voltas com a contabilidade do dia, tomou um susto e desceu apressado os poucos degraus do barracão, mas, quando subiu os da casa grande, se deparou com seu irmão caído por cima de uma 12, e uma poça de sangue ainda se esparramando, pois, ele havia se suicidado. Estava feita a desgraça, nunca pensou que um dia chegasse a esse ponto, lutaram tanto juntos, para resultar nesse triste fim, não podia imaginar tamanho do amor do seu irmão pela moça. Este, ficou por muito tempo sem saber o que fazer de tanta tristeza, mas depois do funeral, sua decisão primeira foi a de mandar a boliviana esperar pelo fim da gravidez e no passo seguinte, após esta desmamar a criança, a despediu mandando-a de volta pra sua terra com grande soma em dinheiro, ficando com a criança. Vendeu tudo que haviam conseguido, e se foi, tomou o rumo do seu país, levando a criança consigo. A casa grande com as duas painas que ficavam na curva do rio, já não era a mesma, o novo proprietário a pintaram nas suas cores, em seguida aumentaram todos os preços que os irmãos Kaled praticavam, os seringueiros acuados nem conta sabiam fazer coitados, tinha que comprar com eles que aviavam de tudo, vendiam desde agulha até pano para mulher de regra, para serem quitadas ao final do ano com suas pélas, as quais, sequer davam para pagar toda dívida, então, o que sobrava era rolada para o ano seguinte e assim por anos a diante. Eles cada vez mais ricos e os seringueiros cada vez mais pobres. O que restou nas conversas dos seus encontros ao pé das fogueiras, foi a lembrança do tempo dos irmãos Kaled, que tinham saldo para mandar os filhos pra cidade estudar, os assuntos eram inesgotáveis...onde todos conheciam um pouco das histórias deles...o fato é que nunca mais se soube deles dois.

Molar e Ivan Campos Moreira
Enviado por Molar em 22/01/2023
Código do texto: T7701065
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