DO LIXO AO LUXO.
-"Vai, Minduim. Joga a lata." O recipiente de tinta voou, indo parar na mão do rapaz, se equilibrando na laje do edifício Antares. Meia noite. Ainda dava pra sentir o cheiro da tinta fresca do prédio de vinte andares, tomado de escritórios, recém inaugurado na rua Augusta. O rapaz amarrou a corda e desceu. O spray foi ligeiro. A careta da gangue de pichadores e as iniciais TQMU. Letras grandes no alto do prédio. Minduim sorriu. Ele deslizou pelo cano de esgoto e desceu até o térreo. A sirene da polícia. Os dois rapazes correram pela laje até a loja vizinha. Edu mancava, devido a queda que teve, meses atrás, pichando outro prédio. A polícia deu a volta no quarteirão. Os dois jovens entraram numa escola, pulando o portão. -"A caixa d'água. Não vão nos achar lá." Eles escalaram a caixa d'água e entraram. Três viaturas em frente a escola. Os guardas invadiram. Minduim e Edu ouviram as vozes dos policiais. Em silêncio, molhados com água até a cintura, estavam em segurança dentro do reservatório. O zelador da escola assustou quando viu os dois rapazes no telhado. Minduim e Edu pularam o muro e seguiram até a favela do Urubu. A tarde, três rapazes procuraram o Minduim. -"Aqui está o combinado. Dez latas de spray." Disse o garoto sardento ao Minduim. Era o prêmio da aposta de qual gangue de pichadores conseguiria pichar o Antares, a uma quadra do batalhão da polícia. A assistente social procurou o rapaz. -"Minduim?! Está na baixada, soltando pipa." Disse a mãe do rapaz, dando uma mamadeira ao caçula. -"Esse garoto não quer nada, dona Célia. Não estuda, não trabalha. Só quer pichar essas porcarias nos prédios. Vai acabar morrendo numa queda ou tomando tiro da polícia." Disse Renato, padrasto do Minduim. -"Olha. A tia da ONG chegou." Apontou o Betinho. Minduim foi até ela. -"Minduim! Tenho uma coisa boa pra você!" O rapaz não deu importância. -"Vai embora." A mulher não vacilou. -"Não vou. Alugamos a casa 26. Será a sede da ONG. Se quiser, poderá grafitar todas as paredes e muros." O rapaz riu. A turma fez zueira. -"Vai Minduim. Vai ser desenhista playboy." O rapaz encarou a mulher. -"Não sou grafiteiro, sou pichador." Célia insistiu. -"Poderá expressar sua arte, sentimentos, num espaço colorido e agradável. Sua arte será vista e conhecida." Minduim se interessou. -"Não vou ganhar nada. Tô fora." Célia colocou a mão no ombro dele. -"Vou fornecer o material. Poderá ir pintar quando quiser, no seu tempo. Poderá desistir, se quiser." Ele se virou e desceu a ladeira. Minduim ficou pensativo. As pichações surgiram nos EUA, nos anos 60, como firma de protesto e rebeldia. Mensagens em spray eram vistas nos muros e prédios, nos trens do metrô e fachadas de lojas. Na década de 70 e 80 chegaram e viraram moda no Brasil. As temáticas eram sociais e políticas. Alguns artistas expuseram desenhos na Bienal de São Paulo, em 1985. O MAC de São Paulo fez um grande encontro de grafiteiros do mundo todo, em 2008. Os irmãos Otávio e Gustavo, conhecidos como Osgêmeos, têm trabalhos lindos, são reconhecidos internacionalmente. -"Pode começar pelo muro. Faça o que quiser." Célia trouxe um copo de suco e um sanduíche ao rapaz. -"É diferente. Aqui não tem o risco, a polícia." Ele estava indeciso. Edu chegou com três adolescentes. -"Não ia deixar a gente de fora dessa, Minduim. Quer ajuda?!" Eles conversaram muito. Em cinco dias, o muro está todo desenhado. -"Ficou muito bom. Vai ser um ponto turístico do bairro." Disse a assistente social aos rapazes. -"Mulher louca. Pichamos o muro e ela acha que é arte." Disse o Edu ao Minduim. -"Aquele índio ficou estranho. As casas, o morro. Não sei." Minduim e Edu foram a biblioteca e pesquisaram sobre grafite. -"Temos que fazer um fundo, preparar a parede. O traço deve ser forte e a mensagem central. Impactar. Vamos fazer diferente dentro da nossa ONG." Edu riu. -"Nossa ONG?! Não sabia que estava assim, já sentindo parte da ONG." Uma semana depois, Célia convidou Minduim e Edu para participarem da ONG. Teriam um salário e horários a cumprir. Minduim passou a ensinar desenho às crianças do bairro. Edu auxiliava os professores de capoeira. Um ano depois, a diretora de uma creche visitou a ONG. Encantada com os grafites, convidou o Minduim pra decorar sua creche. -"Só vou se a criançada for junto." O trabalho de três semanas rendeu um bom dinheiro ao Minduim. Edu fez um curso de culinária e virou o cozinheiro da ONG. Minduim e Edu voltaram a escola, onde terminaram o ensino médio, o que encheu de alegria seus pais. Minduim fez vários desenhos pela cidade e se tornou conhecido. Ele conciliava o trabalho na ONG com o emprego num frigorífico. Um painel na avenida Vinte e Três de Maio lhe rendeu um prêmio de vinte mil reais. O painel foi matéria no programa Fantástico. -"Como estou?" Dona Zuleide olhou para o filho com orgulho. -"Lindo. Esse terno caiu bem." Minduim, a mãe e o padrasto entraram no táxi. A casa nova na Moóca ficou pra trás. -"Nossa primeira viagem de avião. Nova York, aí vai a família Bezerra." Vibrou dona Zuleide, a caminho do aeroporto. Minduim era um dos três artistas convidados a pintar um painel, na entrada do museu da cidade. Passagens, hotel, tudo pago pelo museu americano. -"Uma semana aqui, ainda não vimos neve." Disse Minduim ao amigo Edu, numa mensagem de WhatsApp. -"Sinto informar que você passou de dez milhões de seguidores, Minduim. Quem diria que seus desenhos seriam famosos? Do lixo ao luxo." Minduim mandou uma foto com Célia. -"Olha quem veio, Edu? Veio amarrada, a contragosto. Morreu de medo do avião cair. " Minduim a abraçou. -"Vou postar , sobre a gratidão. Estou aqui, graças a essa mulher." Célia discordou. -"Graças a sua arte, ao dom que Deus lhe deu. Deus dá um talento a cada pessoa, Paulo Sérgio. Ou melhor, Minduim." FIM