Para ver a neve
Queria abrir a janela e ver a neve. Nada além de um muro pálido e um rasgo de céu cinza. E se lavasse a janela? Procuro recompor o conjunto de músculos e ossos. Tento captar algum novo pensamento, algo que me diferencie e conduza a um novo plano. Sem cor, luz ou vela. Queria ter um número para discar e uma voz que me amasse na outra ponta. A vida é para quê? Só tenho como companhia a tristeza de meus pensamentos. Nem mesmo no álcool ou em um punhado de pó encontro fuga. Desisto de tudo. Melhor sair para o mundo.
Vou ao banheiro, lugar de bons momentos, idealizados, que nunca vivi. A luz fosforescente pisca querendo queimar. Parece rir de mim. Sou motivo de chacota dos objetos que me rodeiam. O chuveiro gargalha. Ainda ligado? Sei que a conta será de chorar. Como ninguém ainda reclamou? Moro no primeiro andar de um condomínio antigo. Um amontoado de caixas guardando decepções. Sei que deve haver alguém feliz no mundo, desde que não seja eu. Resisto ao tiro na têmpora, ao veneno e ao último nó na garganta. Bastam os apertos que já vivi.
Seria hoje sábado? Tenho um lugar para ir, um trabalho, uma leva desafortunada de clientes cujo nome não sei, não quero saber. A medicina não me trouxe melhor sorte. Estudei por imposição. Meu pai que o diga. Em qual inferno tornarei a encontrá-lo? Olho para as rugas, as olheiras, a cava na testa branca. Ainda guardo os mesmo olhos azuis. Azuis de quem? Minha mãe, dizem. Não a conheci. Morreu no parto; motivo pelo qual fui amaldiçoado.
Queria retornar ao ventre e estrangular o cordão até que morresse.
- Tu hás de se médico. – foi a ladainha que sempre ouvi.
- Sou médico! – grito para as quatro paredes surdas. De que me vale o título, o status, se perdi a mim mesmo em algum ponto da jornada? Deixo no banheiro o fruto de meus dejetos. Que dia é hoje? Procuro no calendário uma orientação. Quem sabe no celular? Não merece confiança, visto não regular o dia. Desregulou em momento de queda e lá deixei.
- Merda! Onde está o celular?
Olho para o abandono do pequeno apartamento. Se uma mulher vivesse aqui, teria eu a mesma liberdade? Fiquei noivo uma vez. Adivinhe quem quase foi aquela que faria sofrer por uma eternidade?
- Cecília! – dou um biscoito a quem adivinhar de quem foi a escolha. Meu pai nos apresentou em um churrasco que programou para tal fim. Deu como desculpa seu próprio aniversário. Lá estava ele a apresentar o filho, acadêmico de medicina, estuda no Rio de Janeiro. O orgulho brilhava intensidade naqueles olhos cinzentos. Os cabelos e bigodes grisalhos, a barba escanhoada, o rosto fino e comprido, o sorriso largo a me exibir como um dos seus reprodutores. A fazenda foi pintada, cercas, pontas das telhas, quase coloriu o gado! Lideranças políticas, mulheres cobiçando filhos de fazendeiros, eu entre eles.
Queria apenas me divertir, zombar, zoar. Vesti uma camisa branca, deixei os cabelos em desalinho. Levantei a gola. Sapatos em brilho por conta de uma serviçal intrometida. Calça jeans surrada. Apareci na última hora. Já havia muita gente. Colhi um olhar de desaprovação do velho. Na primeira oportunidade cutucou:
- Não penteou os cabelos? – dizia a tom baixo, disfarçando um sorriso falso, não queria escândalo. Lancei goela abaixo uma azeitona e saí pelo ambiente. A música sertaneja tocada por duplas que se revezavam. Devo admitir, sabia ele fazer uma festa, quase tão boa quanto as minhas na cobertura da Atlântica. Foi numa dessas que me surpreendeu. Dançávamos quase nus na pequena piscina. A orgia iniciava, embora alguns casais já houvessem avançado. Um amigo chamou:
- Tem um velho te procurando.
- Mande passear! – disse enquanto agarrava a Luísa, belas cochas e bunda.
- Diz que é o seu pai. – achei que fosse troça. Não era. O velho de terno cinza, chapéu de couro na mão, vendo um casal transar no sofá. Mal apareci e apontou-os:
- Foi para isso que te mandei dinheiro?
Eu era o popular acadêmico Jair Bernardes, rei das baladas noturnas, figura carimbada nas colunas sociais. No dia seguinte estava de volta à fazenda, acorrentado e ouvindo um infindável sermão. Ele me fez trabalhar um ano nos currais limpando estrume.
E o celular? Será mesmo sábado? Acho que dá para sair e tomar uma cerveja. Resolvo ligar a TV. A programação me daria uma dica se era dia de folga. Cadê o controle remoto? Será que não sei mais ligar essa coisa sem ele? Procuro entre as roupas espalhadas pelo chão, pela poltrona, na cama. Abro gavetas. Fecho gavetas.
- Controle, controle... – resolvo ligar na marra. Aperto o botão. Tenho que mudar os canais ali mesmo. Desenhos, filmes, pregação evangélica. Se for sábado ou não, nesse horário não vou saber. Procuro me lembrar do dia de ontem? Parecia ser sexta? Não, não era sexta. Se fosse teriam desejado, no Cais:
- Bom final de semana, doutor. - Ninguém disse isso. A certeza de que já deveria estar no trabalho aumentava. Mais uma falta, mais um atraso. A vantagem de ser médico é que sempre posso dizer que estou em cirurgia; isso apaga tudo.
Foi um milagre quando meu pai resolveu me tirar do estrume e mandar de novo para a faculdade. Morreria se o seu único filho não virasse doutor. Chamou-me à sala em uma tarde. Eu estava magro, sujo, abatido como um dos seus peões. Conversou sério. Eu teria nova oportunidade. Só que seria na faculdade da região. Ele me policiaria, não teria a mesma mesada. Pagaria o aluguel de um quarto e a conta de um restaurante. Se precisasse de livros deveria dar-lhe os nomes.
- Isso ou o curral?
Eu não tinha vocação para a medicina, tinha menos para peão. Resolvi atender à sua vontade. Formei-me. Ele compareceu. Enviou inúmeros convites aos amigos, publicou notas em jornal. Poderia morrer em paz. Com Cecília não foi diferente. Sei que ela se encantou, mas era sem graça. Tinha as curvas e dotes que os hormônios possibilitavam, mas nunca seria boa de cama. Saímos algumas vezes, ficamos noivos e eu desfiz tudo quando dei um escândalo em uma boate. Meu pai quase matou-me:
- Não cansa de me envergonhar? E logo com a filha do Marcondes? Lixo! Matou a mãe no parto e continua a me arruinar. –Não foi à toa que não chorei no seu enterro, além de ter aparecido bêbado. Fiz um discurso sobre o caixão. Recebi olhares de censura aos quais me acostumara.
Onde o celular? Ele toca e eu o encontro. Era a voz de uma das enfermeiras do posto de saúde.
- Estou indo, disse. Estava em cirurgia, completei.
Certamente não era sábado e não havia neve...