MEMÓRIAS DA INFÂNCIA EM UM REFORMATÓRIO
O garoto Pedrinho não teve uma infância fácil. Era o ano de 1942. Ele estava com 7 anos de idade quando a sua mãe optou por interná-lo em um reformatório. Na verdade ela não teve escolha. Seu marido faleceu subitamente e ela se viu sozinha em uma sociedade conservadora. Como seu marido trabalhava como autônomo, não deixou pensão para sustentá-los. A mãe de Pedrinho teve que trabalhar fora e não tinha dinheiro para pagar alguém para tomar conta do menino. A única opção foi interná-lo em um reformatório chamado João Pinheiro. Pedrinho ficou muito triste quando recebeu a notícia. Era filho único e iria se separar de sua mãe. Já estava tudo acertado. No dia seguinte ela o levaria para o reformatório.
Às 6:30 da manhã sua mãe o acordou. Era hora de partir. Ele iria para um lugar onde não conhecia ninguém. Sentiu muito medo e começou a chorar, mas sua mãe tentou acalmá-lo dizendo que iria visitá-lo sempre. Mas isso não o consolou. Percebendo que não tinha jeito, se arrumou e foi embora com a sua mãe, sentindo uma dor no peito.
Chegaram ao reformatório João Pinheiro às 08:00 hs. O local era bem grande. Havia uma quadra de esportes, um refeitório, uma sala grande onde eram realizadas as missas, uma sala de cinema e muitas acomodações para os meninos dormirem. Havia muitas crianças internadas no reformatório, somente do sexo masculino. Ele olhou assustado. Todas aquelas crianças, algumas maiores do que ele, outras do seu tamanho. Será que ele conseguiria se adaptar lá? A sua mãe foi até a recepção. Ela e seu filho foram recebidos por uma mulher vestida de freira. Era a madre superiora do local. Uma mulher com cerca de 60 anos de idade, branca, alta, com a cara fechada. Sua mãe o apresentou à madre que abriu um sorriso. Um sorriso que não parecia ser verdadeiro. A irmã disse a mãe de Pedrinho que iria apresentá-lo aos meninos que moravam no João Pinheiro. Disse também para ela não se preocupar, pois ele seria bem cuidado lá. Doce engano. Sua mãe se despediu da madre superiora e deu um abraço em seu filho. Depois foi embora dizendo que voltaria para visitá-lo.
A madre superiora explicou a Pedrinho como funcionavam as regras do local. O reformatório era muito rígido. Tinha horário para tudo. Horário para dormir, para acordar, para tomar banho, para estudar e para ir às missas. Era obrigatório ir à missa, que ocorria sempre aos domingos, e às vezes nos outros dias da semana, dependendo do caso. Pedrinho não gostava de ir à missa, mas já havia se acostumado, pois a sua mãe era católica fervorosa e sempre o levava à missa aos domingos.
No início, Pedrinho sofreu bastante no reformatório devido as regras rígidas às quais não estava acostumado. Também sofreu bastante com as irmãs do local, pois ele era um menino franzino, de pele escura, e havia preconceito por parte das irmãs principalmente com os garotos de pele escura. A intenção não é levantar nenhuma bandeira de racismo. Apenas citar os fatos como ocorreram, mesmo porque os fatos descritos ocorreram na década de 40, em uma sociedade completamente diferente da sociedade atual. Castigos e agressões eram comuns de acontecerem. As irmãs de caridade não tinham paciência e muito menos carinho com os meninos que moravam no João Pinheiro. As experiências que o menino Pedrinho teve no reformatório marcariam para sempre a sua vida. Ele jamais se esqueceria do que passou naquele local. Mesmo adulto, depois de casado e com filhos, ele se lembrava da sua estadia no reformatório João Pinheiro e narrava as histórias que viveu para seus filhos. A intenção desse texto é narrar uma dessas histórias, que apesar de ser uma história aparentemente simples, marcou para sempre a vida e moldou o caráter de Pedrinho de forma definitiva.
Havia passado três anos desde que Pedrinho havia chegado ao Reformatório. Já havia se adaptado ao local. Sua mãe sempre o visitava quando podia, mas a primeira vez que ela foi visitá-lo, ele não quis falar com ela. Sua mãe não teve escolha como já foi dito antes, mas para uma criança de 07 anos ter maturidade para entender isso, era impossível. Com o tempo ele foi se acostumando a viver no local que para ele era como se fosse uma prisão. Mas Pedrinho foi fazendo amizades com outros meninos, se enturmando com os garotos que ele tinha afinidade. Aprendeu a fumar aos 7 anos, quando entrou no João Pinheiro. Este fato traria consequências muito graves em sua fase adulta, mas isso será contado em outro texto.
Já havia passado cinco anos e Pedrinho já estava com doze anos. Ele adquiriu fama de valente. Não corria de nenhuma briga. Passou a ser respeitado pelos meninos que moravam no João Pinheiro e começou a andar com os garotos que eram como ele. Era a lei da sobrevivência. Sua turma gostava de brigar, provocar os outros meninos. Os garotos do reformatório o consideravam um verdadeiro "galo de briga". Porém, havia um outro menino internado no local que não andava com turmas e não gostava de confusão. Não brigava com ninguém. Era um garoto bom, até demais. Chamava-se Ângelo. Em um lugar como o João Pinheiro, isso não era muito bom. Esse menino, apesar de ser anatomicamente forte, não era respeitado pelos outros por ter uma personalidade serena. Ninguém tinha medo dele. Era inofensivo e ganhou o infame apelido de "pata choca". Todos o chamavam assim, mas ele não reagia. Aceitava sem resistência.
Um certo dia, no horário de recreio, todos os meninos se encontravam na quadra. Um dos garotos da turma de Pedrinho, um menino chamado Fábio, garoto malicioso, percebendo que Pedrinho nunca mexia e nem insultava o garoto que era chamado de pata choca, resolveu fazer uma proposta a Pedrinho. Fábio disse a Pedrinho para chutar o traseiro de Ângelo.
Fábio _ Duvido que você tem a coragem de chutar a bunda do pata choca, Pedrinho.
Pedrinho _ Não vou fazer isso não. Não tenho nada contra ele.
Fábio _ Você não tem é coragem. Fala que é valente, mas está com medo. Aposto que você não tem coragem. Dá uma de valentão mas tem medo do pata choca.
Pedrinho _ Deixa ele quieto. Ele não mexe com ninguém.
Fábio _ Não falei pessoal? Não falei que o Pedrinho ia arregar? Tá é com medo do pata choca!
Os outros garotos da turma do Pedrinho começaram a rir e a caçoar dele, dizendo que ele estava com medo. para não perder a fama de valente, Pedrinho resolveu atender o pedido da turma e desferiu um chute no traseiro do garoto. Ângelo se assustou. Nunca tivera problema com Pedrinho, até gostava dele. Então Ângelo disse a Pedrinho.
Ângelo _ Que isso Pedrinho? Por que você fez isso? não quero brigar com você!
Pedrinho ignorou o que o menino disse e voltou para a sua turma, que nesse momento ria bastante.
Fábio _ Muito bem Pedrinho. Mostrou que tem coragem. Mas quero ver se você tem coragem de fazer de novo. Se fizer, vai ganhar a minha sobremesa!
Pedrinho foi até Ângelo e novamente desferiu outro chute no traseiro do garoto, dessa vez mais forte.
Ângelo _ Para com isso Pedrinho! Já disse que eu não quero brigar com você! Te considero meu amigo!
Pedrinho _ Não enche o saco pata choca!
Depois do segundo chute, Pedrinho voltou de novo para perto dos seus colegas, que a essa altura, estavam caindo na gargalhada.
Fábio _ Muito bem Pedrinho. Mas será que você tem coragem de fazer uma terceira vez? Duvido muito.
Pedrinho _ Basta! Não vou fazer isso de novo!
Fábio _ Que isso Pedrinho? É a última vez! Vai lá e te dou minha sobremesa a semana inteira. Está com medo de quê? Do pata choca? Ele não vai reagir!
Os outros garotos também começaram a incentivar Pedrinho, a encorajá-lo, e Pedrinho acabou cedendo. Pela terceira vez desferiu um chute no traseiro do pobre menino. Mas dessa vez o garoto finalmente perdeu a paciência pela primeira vez na vida e ficou enfezado com Pedrinho.
Ângelo _ Dessa vez você exagerou Pedrinho. Não vou mais aceitar isso não. Chega!
Ângelo partiu para cima de Pedrinho e os dois começaram a brigar. A garotada ficou em volta dos dois incentivando a briga. Os garotos do reformatório adoravam quando tinha uma briga. Os dois rolavam no chão. Pedrinho dava tudo de si, mas a verdade é que o garoto conhecido como pata choca era muito forte e estava muito enfezado. Acabou dando uma surra em Pedrinho na frente de todos os garotos. As irmãs escutaram a confusão e separaram a briga, mas já era tarde. Pedrinho havia apanhado do pata choca. Ele jamais esqueceria este fato.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Pedrinho se dirigiu à sala de cinema que estava vazia, e ficou sentado sozinho, pensando na briga. Como ele iria encarar todo mundo depois de ter apanhado na frente de todos, e logo do pata choca, que nunca batia em ninguém. Ele ficou durante muito tempo na sala, remoendo, atormentado, pensando na briga. De repente alguém entrou na sala escura. Naquele momento, tudo o que ele queria era ficar sozinho. E, para piorar, era o pata choca, a última pessoa que ele queria ver naquele momento.
Ângelo _ Pedrinho. Eu vim aqui para te pedir desculpas. Eu não queria bater em você não. Mas você me provocou além dos limites. Mas eu não estou mais com raiva de você. Estou até arrependido pelo que eu fiz. Desculpa Pedrinho!
Nesse momento, Pedrinho, que até aquele momento não havia chorado, sentiu as lágrimas rolarem pela sua face. O garoto que havia lhe dado uma surra, havia entrado na sala para pedir desculpas, sendo que o errado na história era o ele. Pedrinho sentiu um misto de vergonha e remorso naquele momento. Daquele dia em diante, o menino mudou a sua personalidade. Parou de andar com a turma que gostava de provocar brigas. Pedrinho só brigava quando era provocado, e somente para se defender.
Pedrinho ficou internado no João Pinheiro dos 07 aos 16 anos. Anos mais tarde, ele contaria essa história a seus filhos e diria que foi uma lição que ele jamais se esqueceu, fato que guardou para o resto de sua vida. Respeitar os outros é essencial, pois respeitando é que se adquire respeito.
NOTADO AUTOR:
O protagonista da história, o menino Pedrinho, realmente existiu. É meu pai, falecido em 2015, que viveu dos 07 aos 17 anos em um reformatório localizado em Belo Horizonte de nome João Pinheiro. A história também é verdadeira.