Asfixia
Referência: MENDES, Lavínia de S. A. Asfixia. Conto publicado na coletânea Antes de agora. Goiânia: Editora Negalilu, 2022.
Vistas concentradas em telas, intermediadas por três graus e meio de hipermetropia e óculos, necessários desde a infância. O fundo das telas, plano secundário e periférico, é colorido por algumas plantas de pequeno porte, o muro em tom bege e, logo acima, o céu. Mente desatenta e inquieta, pensando na grana, me disseram que bastava ter gana, para alguns vem fácil com a fama, mas essa farsa não me engana. Não tinha usura ou gula. Satisfazia-me o suficiente pra comer, dormir, não perecer, ir e vir, sem temer ou pedir.
Chegando na metade do texto não sabia se era o início. Desconcentração e ansiedade. Fechei o arquivo e naveguei em vários sites. As notícias despencaram. Em alta o dólar, novo monstro a inflação, cesta básica valendo milhão, guerra e gás, Copa e paz, vírus novos, mesa sem ovo, velhos "ismos", pesadelos de novo, indígenas sofrem invasão, meio ambiente em perigo, "uma ova" pra educação.
Fechei todas as páginas, busquei uma música e um jogo, dos que parecem triviais, com intuito de interromper o ciclo. Não entendi a lógica do game e a melodia, que sempre me agradou, incomodou meus ouvidos. Desisti disso tudo e pensei nas minhas criações. Desenho novo, colagem que nunca tive coragem de arriscar ou um vídeo, que abandonei nos primeiros cinco segundos e nunca mais retomei. As ideias não fluiram.
Sentada em um banco de madeira, senti cheiro forte de fumaça. Firmam-se os graus celsius acentuados e as queimadas explodem nossa visão e olfato. Ouço ao fundo, o estalar, constante, provavelmente de lixo, se tornando cinzas, que logo cobrem partes do piso.
Minhas mãos se contentam com a superfície envernizada da mesa, as telas-touch que me engolem e a porcelana da xícara-de-sempre. Amante do movimento repetitivo de pousá-la em minha boca, sou surpreendida pelo adeus do café. Ao puxar o vazio engoli fumaça.
Quero pegar mais café e botar fogo em um cigarro, ou em vários, o que é mais provável. Mas inspiro tanta fumaça que desisto da ideia de desafiar minha respiração e digerir duas.
Quero botar fogo num pedaço de borracha no fundo do meu quintal quando o vento estiver contra a casa do vizinho. Mas que sentido tem colocar a mira no meio ambiente pela segunda vez pra provar o quanto aquilo é capaz de sufocar?!
Quero esquentar a comida dormida, que dormiu mais que eu, no fogão. Mas fogo não aguento ver mais. Náusea visual. E a ideia do gosto tóxico, de terra e ar maltratados, misturado com agrotóxico e conservante, espetando minha língua, não me agrada.
Quero levantar. Isso eu faço, depois de perceber tudo descarregado, sem texto na tela e minha atenção seguindo o ritmo da mancha preta no céu. Deixo a xícara na pia da cozinha, passo pela sala, pego a chave, vou direto ao portão e o abro, num estado de raiva tão profundo que cuspo fumaça.
A paisagem parece as estradas que vi numa viagem, que nem lembro o destino. Provavelmente, outros brasileiros, de outros Brasis, diriam o mesmo sobre outros caminhos, esquecidos ou não. Asfalto cercado de terra preta, estampando ao fundo a soja e o gado. Os pássaros e outros animais não visíveis exprimiam sons incomuns. Cantos escarrados nos momentos de horror e desespero.
Em seguida, a realidade toca meu ombro e me lembra que não é confiável estar exposta, com os portões vulneráveis, sozinha em casa. Não se sabe o que ou quem pode surgir. Em ruas tão paradas, qualquer movimento gera desconforto e incerteza, ainda mais num bairro que nunca ousei conhecer.
Volto ao interior da casa, que não era propriedade minha. Adentra-me um desconforto, diferente da fumaça. Lateja a exigência sobre encontrar saídas monetárias naquele mês, e no próximo também, e de novo, de novo. Uma rata de laboratório no meio do cerrado desmatado.
Vieram-me a dúvida e a curiosidade sobre formas alternativas de viver, não dos alienígenas. Aqui mesmo. Aquelas que não sejam sanguessugas do gosto em respirar. Pensar em outras alternativas parece tanta loucura, porém, ao vislumbrar o esforço para que cada porta de fuga se feche - em estratégias tão sutis - quer dizer que é possível.
Decidi não durar mais ali. Antes de ser consumida por completo pela insanidade que batia no fundo da minha cama, arrumo o necessário, jogo umas peças na mochila, abandono a casa com os pertences, saio rumo ao imprevisível.