Pobre Júlia
-Feliz natal! O senhor poderia me dar uma moedinha pra eu comer alguma coisa?
O homem passou por Júlia com três ou quatro sacolas com as compras que acabara de fazer no supermercado no qual ela estava pedindo esmola em frente. A mulher, hoje indigente, mas que como quase todos os moradores de rua, já tivera um lar, estava há quase duas horas mendigando alguns trocados e só havia conseguido pouco mais de três reais em moedas de pequeno valor. O homem com as sacolas apenas olhou de soslaio para a mendiga e seguiu seu caminho, com uma cara de poucos amigos, como se o pedido, quase uma súplica da mulher, houvesse interrompido o seu devaneio matinal, que consistia em escolher qual a cor da camisa que iria usar na ceia.
Era véspera da natal e Júlia pensou que o espírito natalino pudesse fazer as pessoas um pouco mais caridosas e assim conseguir mais dinheiro do que de costume para comprar alguns pães e o tão necessário Corote, que é uma pequena dose de cachaça. Contou as moedas que estavam em sua mão e notou que o valor arrecadado era menor do que em dias comuns; talvez fosse a pressa que acometem as pessoas em datas festivas que fizesse com que ainda não tivesse conseguido o valor suficiente nem para o “gole”. Fechou a palma da mão e nesse instante lhe surgiu à mente a seguinte indagação: será que era obra do destino, como se já estivesse tudo traçado, tudo escrito antecipadamente pelos deuses ou fosse mero acaso o seu estado de vida atual?
Júlia tinha cerca de vinte e cinco anos, e, embora estivesse maltrapilha, pura pele e osso, ainda mantinha alguns traços da sua beleza. Havia sido criada pela sua avó materna, uma mulher já de idade quando havia pego a menina para criar e que já havia falecido há uns três anos, um pouco antes de Júlia ter sido largada pelo seu noivo. Poucas semanas depois, estava sem um teto, vagando pela cidade.
Apesar da fome e da vontade de se alcoolizar, raciocinou retrospectivamente a sua vida para ver se conseguia encontrar uma resposta para tanto sofrimento. Embora ainda tivesse uma pequena fagulha de esperança em deus, não podia acreditar que era por vontade divina que estava sentada no chão, sem calçados, com algumas feridas pelo corpo e mais todas as enfermidades e desgostos das pessoas na sua situação. Como um filme, as imagens do seu passado vieram à tona. Flashes rápidos sobrepunham-se uns aos outros em uma torrente só. Uma discussão entre um casal de adultos foi a primeira visão; depois um bando de crianças amontoadas em um quarto, brincando com algumas bonecas de pano – parecia um orfanato ou algo do tipo. Em seguida, apareceram imagens, agora um pouco mais claras, de sua avó lhe dando banho e trocando a sua roupa. Até que, por fim, surgiu a imagem fatídica, a cena crucial que a fez chegar aonde estava – pelo menos na sua compreensão: seu noivo na cama com sua melhor amiga, em sua própria casa.
O casal estava junto há quase dois anos. Conheceram-se quando ela precisou pegar um Uber para ir ao serviço, já que havia perdido o horário do ônibus que pegava todos os dias. Ele era motorista de aplicativo. Na época, ela tinha dezoito anos recém completados, e André, quase trinta. Justamente o detalhe que fê-los terem conhecimento da existência um do outro era o ingrediente que fazia com que a união do casal parecesse obra do destino: no dia em que se conheceram, Júlia só chamou o Uber, porque a avó Leoní havia lhe pedido para ir na venda da esquina comprar uma vela, já que era dia de São Jorge. André era frequentador de uma casa de Umbanda, e quando ficou sabendo do motivo do atraso da sua, até então, passageira, através da conversa entre eles, após o embarque de Júlia, usou da sua lábia e boa aparência para cativar a moça com ideias que faziam alusão de que aquele encontro tivesse sido obra dos orixás.
André era pai de dois filhos, ambos na faixa dos sete e dez anos. No momento em que conhecera a jovem moça, ele morava sozinho em uma casa de aluguel.
Passadas poucas semanas depois, Júlia estava apaixonada, uma paixão arrebatadora. A infância um tanto sofrida, tendo apenas a avó por perto, fizera da jovem uma pessoa carente. André percebeu isso com o tempo e usava de suas artimanhas para, mesmo sempre fazendo muita besteira no começo da relação, fazer com que Júlia sempre estivesse precisando dele por perto. Após pouco mais de um ano e meio de mentiras e promessas da parte dele, resolveu levá-la para morar na sua casa.
Júlia ainda estava em seu emprego de caixa de supermercado, o mesmo de quando se conheceram. Depois de uns dez dias morando juntos, viu uma mensagem no celular de André, de uma tal de Bianca, mensagens comprometedoras, que abalariam qualquer relacionamento. Só existia uma maneira de André ainda ficar degustando aquele corpo moreno e esbelto da sua jovem amante Júlia – pedindo-a em noivado. Ela aceitou.
Vez por outra ele buscava-a no serviço, dando carona para Mônica, a amiga e colega de trabalho de sua “noiva”. Essa mesma Mônica que foi pega em cima de André, na cama do casal, depois que Júlia voltou de uma visita à casa de sua avó, que não estava, fazendo assim com que chegasse em casa não muito tempo depois da saída e de ter pego os dois fudendo enlouquecidamente.
Depois deste fato aterrorizante, André terminou o noivado e levou Mônica para morar com ele. Júlia voltou para a casa da avó, que veio a falecer logo em seguida, não deixando nada para a neta, já que a casa onde a avó alugava tinha sido pedida pelo proprietário, este alegando que já queria vender a casa faz tempo, que só não havia feito isso ainda por consideração da boa e velha Leoní.
Uma criação quase sem nenhum suporte emocional fez Júlia não conseguir segurar a barra. Tinha o peso na consciência de que a avó havia sucumbido devido a sua saída de casa para ir morar com André. Após o falecimento da avó, foi só ladeira abaixo. Sua mãe, nessa altura, estava internada em algum sanatório para dependentes químicos; seu pai, nunca conhecera.
- Senhora, uma moedinha para uma pobre coitada, por favor.
Uma senhora já de idade bem avançada, de bengala e uma bolsa no ombro, tirou uma nota de vinte reais da carteira e entregou para Júlia. A pobre coitada agradeceu e constatou que o seu destino não estava traçado pelos deuses, mas, pelo contrário, que se tivesse pegado o ônibus naquele dia e não chamado o Uber, hoje estaria feliz ao lado da sua vovózinha amada.