O Tempo Se Foi

16.12.22

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Assistia pela TV um jovem surfista descendo uma enorme onda do mar, dentro de um tubo de água límpida e cristalina, em alguma praia paradisíaca. Estava na academia do clube que frequento fazendo “reforço muscular”, pois nessa fase da vida precisamos reforçar o que não tem mais força no nosso cansado corpo. Pensei, invejando-o:

-Que vida “deliciosa” tem essa pessoal !

De olhar fixo no atleta no espumante da água e executando mecanicamente o exercício no equipamento em frente à tela, lembrei-me dos meus treze, quatorze anos em que passava as férias de verão no Guarujá. Meu pai alugava um apartamento de frente para o mar, e eu ficava as tardes na sacada vendo os surfistas de cabelos compridos e oxigenados descendo as ondas. Eram considerados rebeldes, “maconheiros”, fora dos padrões de educação e moral que eu recebia. Eu não poderia ser surfista. Olhava-os com tremenda inveja, pois queria fazer o mesmo. Pela manhã, para o meu consolo, pegava “jacaré” com uma prancha de madeira imitando meus heróis de cabelos descorados.

-Já não deu, seu Fernando? – diz o professor, tirando-me do frustrado sonho de ser surfista em que devaneava assistindo ao vídeo.

-Ah, sim claro!

Voltei para casa e depois do almoço deitei-me no sofá do quarto olhando para o mural de fotografias, que havia montado em um quadro de cortiça preso à parede. As fotos formavam um breve resumo da minha vida.

Hoje, fotografias impressas estão em desuso, pois elas ficam no “Instagram” ou no “Facebook”. Perderam o seu lugar na nossa existência, são do passado. Na minha época as pessoas faziam álbuns de eventos, viagens, festas. E os deixavam sobre as mesas da sala de suas casas para serem folheados e comentados com os amigos. Sou da geração mais antiquada, é verdade, mas a escravidão do celular nos deixa sem memória.

No quadro, têm fotos em preto e branco: dos meus pais com suas roupas sóbrias e sisudas de quando namoravam; de mim, recém nascido, um bebezão enorme e pesado, chorando de boca aberta no colo da minha mãe; eu, aos três anos com meu pai me empurrando na bicicleta; eu com minha querida irmã em sua garupa (balançava-a até cair para pegar a bicicleta. Ela chorava e meu pai dizia: – é uma manteiga derretida!) Boas lembranças!

Uma foto em preto e branco, límpida e alva, se sobressai entre todas: minha mãe comigo no colo, ela de cabelos negros e curtos puxados para trás, usando vestido branco e brincos de pérolas, sorrindo candidamente para mim. Ela era linda. Saudades!

Montei-as em ordem cronológica colocando as mais antigas na parte de cima, descendo até as mais atuais. Estavam esquecidas em uma caixa nas tralhas das mudanças e resolvi resgatá-las. Mas nem todas estão no quadro, há outras que mantive soltas na caixa e as coloquei na sala para serem rememoradas.

Fui descendo o olhar e parei em uma colorida. Estou em pé ao lado do meu pai aos meus quinze anos, de calça e camisa social. Ele de terno e gravata, sempre, pois nunca usou uma camiseta em toda a sua vida. Meus cabelos eram grossos, compridos e cacheados, aloirados pelo cloro da piscina – treinava natação naquele tempo. A foto fora tirada antes de eu ir “trabalhar” em uma imobiliária de um amigo do meu pai. Passava as manhãs lá telefonando para os anúncios de imóveis do jornal o “Estadão”, para captar sua venda ou locação. Estudava à tarde. A imagem mostra que estava tendo o “estirão”, aquele crescimento rápido que nos acontece em poucos meses, porque já estava mais alto do que meu pai em dez centímetros e tinha a fisionomia e o perfil típico de um adolescente desajeitado e meio disforme.

Em um canto do quadro estão as fotos em que eu era vidrado em futebol. Vestia camiseta e shorts branco, tênis em couro preto da marca “ Íris ” de cano alto, todo ralado. Jogava na rua com a molecada com bola de “capotão”, não existia Nike nem Adidas, e ”Kichute” era o rei dos tênis. Os amigos com quem jogava, nunca mais os vi e não sei de suas histórias de vida. Uma pena, pois hoje, gostaria de reencontrá-los e reviver nossos bons tempos. Faz quase sessenta anos que tenho essa foto, pois tinha dez quando foi tirada – tem a data escrita em seu verso, costume que se fazia para registrar a época. O tempo passa rápido, muito rápido.

Mais para o meio do mural estão as fotos dos meus filhos pequenos. Deparei-me com uma em que estão sentadinhos no sofá na casa dos meus pais. Deviam ter uns três a quatro anos. Os deixávamos lá para passar a noite quando saíamos e os buscávamos no dia seguinte. Eles adoravam esse programa, pois assistiam à televisão com o avô, que logo dormia a sono solto. Ele escondia de propósito chocolates no armário do quarto, os meninos sabiam, pegavam e se deliciavam comendo-os ao ronco do meu pai. No dia seguinte, ele me dizia piscando: - comeram bastante chocolate que deixo escondido, mas eles acham. Os meninos se entreolhavam e riam. Saudades!

Chegando já na parte de baixo do quadro, em fotografias separadas, estou montado em três motos diferentes. Minha paixão! Nelas, a minha idade se manifesta em rosto e físico. O tempo corre, e muito.

Observando as lembranças dos momentos estampados no papel fotográfico, avivaram-se em minha memória. E ao olhá-las, falei comigo:

-Quanto tempo, hein? Tudo isso aconteceu há mais de meio século.

Depois, pensando no surfista descendo a bela onda em praia paradisíaca a que assisti naquela manhã, dei-me conta de que não conseguirei imitá-lo de forma alguma, pois infelizmente, o tempo de fazê-lo se foi.

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 16/12/2022
Reeditado em 21/12/2022
Código do texto: T7673463
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