A HORA
“mas onde pernoita o corpo da criança que foi
ele sabe que não amanhecerá nunca mais”
Al Berto in “Vigílias”
Ele sabe.Reparou.Na fotografia emoldurada tirada talvez há mais de sessenta anos em que a fila das pessoas que está de pé e em terceiro plano morreu ou foi morrendo desabridamente como a queda da folha das árvores no Outono.Folhas secas.Todos, não escapou nem um.Da segunda e da primeira fila sentadas, as crianças atravessavam agora a sua fase de execução.
Ele olhou-se gravemente ao espelho, vestiu a camisa azul, fez o nó da gravata preta,vestiu o blaser azul escuro e aprumou-se.Inclusivamente não se esqueceu de deitar o perfume sobre o pescoço, os ombros e os peitorais já sem a firmeza de outrora, como se fosse para uma festa ou um evento solene.
E conduziu o carro até ao bairro onde a irmã,dez anos mais mais velha morava e parou no local aprazado onde ela subiu com dificuldade com a ajuda de uma canadiana.
Rumaram ao perímetro da cidade branca naquela tarde infame para velar a prima,da sua geração.
Que se finara no hospital em coma.Uma presença vaga gentil para ele e mais uma companheira de roda, de almoços tardios para ela, entre primas, mulheres maduras e decepcionadas, a quem chegara a hora.
A defunta tinha casado duas vezes, dera à luz duas filhas, exercera duas profissões e fumava dois maços por dia.
Ele ligou o GPS e ouviu a voz detestável a indicar-lhe o caminho entre pausas longas e contraditórias, falou trivialidades com a irmã, a cabeça talvez longe dali.
- Siga em frente e vire na primeira à esquerda…Faça inversão de marcha.
- Então ninguém se entende.Não posso virar agora.
A vida era um simples sopro, uma viagem fugaz e sem sentido com confusão e perturbação pelo caminho árduo e sobrelotado e com engarrafamentos sucessivos, tudo em excesso.
- Chegámos.Que igreja mais vanguardista!Parece uma praça de toiros!Que aquitectura!Estás preparada?
Ela saltou do automóvel como uma trouxa de roupa mal dobrada, expressamente desejosa de fumar.
- Mas tu não podes… não deves!
- Nesta altura do campeonato,não quero saber.Já disse.Escusam de contrariar-me.
Foi um sarilho para encontrarem a entrada para a cripta.Um brasileiro a espreguiçar-se num banco próximo queixou-se:
- Já outros caras me perguntaram isso.
E voltou as costas para continuar com as mensagens langorosas no telemóvel.
O velório.Ir ao encontro de velhos conhecidos tornados desconhecidos com a ausência de contacto, prescritos os laços, numa roda de desencontros e falhanços.
João encaminhou Eduarda como um sonâmbulo conduz alguém que se está a charrar no meio de um parque pouco frequentado.Deixou-se ir na onda.
Lembrou-se da Lai ainda criança, de brincar com ela e o irmão na praia, Arrábida ou Costa não se recorda com precisão e há uma foto deles os três com João às cavalitas de Luis, também já falecido e de Lai, a morta a fazer um risco na areia numas dunas cheias vento que levantava os cabelos sob um sol forte de Verão.
As exéquias.O viúvo , um homem alto, parecido com um oficial alemão acolhe-os e agradece a comparência.Descreve o processo.De repente.Ela estava aparentemente bem mas de súbito sentiu-se mal.Urgências.Coma induzido.Extração de um órgão.O baço?Pesadelo.Um filme.Ao fim de uma semana, tudo acabado.
Há uma filha que João só conhecia por postar nas redes sociais que os beija e quase foge.
- Vou tomar um cafezinho e volto já!
Há coroas brancas na capela, o olfato a velas, o caixão fechado e a presença grave da morte a pairar em todo o lado.
Chegam outros primos, homens e mulheres envelhecidos que se tratam por nomes no diminuitivo. João mexe-se incomodado mas promete a si próprio mostrar-se imperturbável.
As conversas perdem-se no eco, na corrente de ar e ramificam-se.
“Fomos almoçar as três, uma semana antes…vivo em Alcochete e ninguém me tira de lá…reformei-me muito cedo porque o meu chefe me perguntou se eu queria e eu desatei num pranto…O meu irmão está em São Tomé em negócios, não pôde vir…Conheci o seu pai e um dia ele perguntou-me se eu não sabia de compradores para uma coleção de armas que tinha em casa…”
A vida continua, flui, os mortos serão em breve esquecidos, banidos,é natural, previsível e compreensível.
Aquele momento pode ser uma farsa, uma cerimónia, um teatro mal ensaiado.Ele olha em volta numa revisão aflita, louca e emotiva:
“Qual será o próximo?
Posso muito bem, ser eu!”
A Morte condoída como uma viúva distinta que se sentou para descansar abre a bocarra imensa e sorri-lhe.
Ele não sabe se está a ter uma alucinação ou se ela mesmo se materializou, entre os convidados,E só pensa:
“Enquanto estiver,por cá vou cometer todos os pecados que me dêem prazer porque chegada a hora, não há mesmo nada a fazer…”