Primeira série amarela
Zími se surpreendeu com o convite para uma entrevista online que chegou ao seu e-mail.
Era para o fanzine de um estudante de Tanabi, onde sua banda, Crop Circles, havia tocado no final de semana anterior.
Tratava-se de um trabalho escolar de ensino médio, e o tema escolhido pelo estudante foi a música alternativa.
Geralmente era a sua parceira musical Mila Cox quem respondia esse tipo de pedido. Ela inclusive veiculava periodicamente seu próprio zine.
O jovem estudante havia mandado antecipadamente para Zími algumas perguntas por escrito, para adiantar o assunto, mas queria mesmo que a conversa fosse antes gravada através da câmera do computador.
A conversa foi longa e o jovem estudante precisou editar muito a entrevista, por conta do espaço limitado que teria para ela no trabalho.
O professor do garoto foi quem orientou a edição do trabalho, que teve boa nota depois de entregue.
Apesar da nota boa, a intervenção e o direcionamento do professor levaram o jovem estudante a uma reflexão sobre censura.
O estudante avisou a Zími que uma edição do fanzine já impresso, estava no correio, endereçada a ele, e junto da edição, uma carta lamentando que o melhor da entrevista havia ficado de fora, pois o professor teve receio de aprovar certos pontos que poderiam lhe trazer problemas com a diretoria da escola., definida por ele como ‘conservadora’.
Zími respondeu por e-mail, dizendo que esse tipo de lacração é inevitável quando há alguém para aprovar ou legitimar um trabalho, e lembrou que grande parte de seu período estudantil ocorreu sob a ditadura militar, quando nem se tocava no tema ‘música alternativa’.
O que se veiculava de música era fortemente vigiado.
Explicou que tudo era proibido, censurado e punido.
A música ser palatável ao gosto do ouvinte médio e aos padrões radiofônicos vigentes era apenas o começo da trilha para se alcançar com ela alguma popularidade.
Eram sempre os mesmos medalhões protegidos pela indústria da música que tocavam no rádio e apareciam em programas musicais na televisão.
Em pouco tempo a programação musical da televisão perdeu espaço pra as novelas.
O Rock era marginalizado no país e nunca foi assimilado pela grande audiência.
Até que nos anos oitenta, de maneira pasteurizada, comercial e domesticada, ganhou espaço midiático, porque havia um público sedento por algo diferente da música popular brasileira dominante, e a indústria resolveu tirar o atraso, soterrando os desbravadores do Rock brasileiro da década anterior, que continuavam marginalizados e esquecidos.
Algumas revistas especializadas surgiram, mas ainda assim, de forma insuficiente para informar uma juventude recém-saída dos vinte anos de ditadura militar.
No século vinte e um, muitos discos e artistas dos anos sessenta e setenta passaram a ser cultuados depois de aposentados ou mortos.
Reedições de luxo em vinil colorido, biografias e tributos.
Foi necessário salientar ao jovem que a ditadura, portanto, nunca terminou de verdade. A possibilidade que se tem atualmente de traçar um retrospecto simples sobre as últimas seis décadas deixa isso claro.
E atualmente, a fartura de informação na internet favorece apenas quem tem algum critério de pesquisa, baseado em referências prévias.
Então Zími sugeriu ao estudante que continuasse com o zine por conta própria, de maneira independente da escola, para que tivesse alguma liberdade de expressão, e que tomasse cuidado com ela.
Disse que muitas vezes o professor e a diretoria de escolas chegam a ignorar a existência de uma cultura alternativa, e que, portanto, para eles essa vertente não existe.
Idealizou uma autoeducação para além da aprendizagem formal obrigatória, para que haja alternativas que viabilizem escolhas para a vida. Para isso seria necessário iniciativa individual, mais a luta necessária para não ter o sonho castrado prematuramente.
Com o tempo essas iniciativas podem se incorporar a coletivos e organizações mais estruturadas e alinhadas ideologicamente.
Em última instância, isso permearia um modo de viver que se enquadra com o que desejamos expressar através da arte, dizia Zími ao estudante.
No caso de Zími, isso significa a liberdade, inclusive para escolher sobre o que se pode abrir mão, quando essa escolha for necessária.
O alto grau de alienação coletiva tem grande valor para os poucos que controlam o pensamento e as ações dessa grande parcela da população, que se orgulha de ser uma ovelha e não sabe nem mesmo que não é livre.
Seus pensamentos são aquilo que alguém quer que pensem.
Precisam sempre de um líder, de um político de estimação e de um deus.
Controlados através do medo e da falta de informação, são capazes das mais ridículas pataquadas, às vezes até mesmo comprometendo suas lideranças.
Bastaria para o estudante imaginar agora o que seria conversar com essas pessoas sobre música alternativa e arte marginal.
Camisetas da CBF embalando nacos de carne sem alma e sem amor-próprio.
A amargura de enfrentar um prejuízo eterno de sete a um no placar, num jogo que nunca termina. Ainda mais louco é o fato de se orgulharem disso.
Zími disse ao rapaz que ele teria que terminar o ensino médio o quanto antes, sem ser reprovado. Para isso não havia escapatória. Era preciso estar um pouco mais livre para se aprofundar em áreas de verdadeiro interesse.
Então seria mais fácil entender por que Zími citou Lydia Lunch, Jay Reatard e Damo Suzuki como referências quando perguntado sobre isso no trabalho da escola.
O estudante, em mensagem de e-mail posterior, disse que chamou Zími para a entrevista, e não Mila Cox, porque se sentia intimidado por ela.
Contou que na primeira vez que a viu, pouco antes do show dos Crop Circles, ela estava sentada sobre um amplificador, fumando, bastante contemplativa, alheia ao entorno.
O garoto nunca esqueceu aquela cena.
Contou a Zími que naquele momento, ela parecia simbolizar a liberdade à qual ele se referia quando falavam sobre isso no trabalho escolar.
Zími tinha vinte e cinco anos a mais que Mila Cox, e disse ao estudante que ela é para ele a única parceira musical possível.
Cox chega com sessenta por cento das músicas prontas, e Zími faz o resto, tentando fazer o resultado ficar diferente de uma simples mistura de Stereolab e Buzzcocks, como foram chamados nos primórdios de sua formação.