Castelo de Cartas
Era uma noite de inverno. O vento soprava gelado. Cássia caminhava tentando se proteger do frio. Lágrimas desciam pela sua face. Levava apenas uma pequena bagagem. Nem sabia pra onde ir. Parou e pensou no que fazer. Pegou um táxi e foi para um hotel.
Sua vida passava como numa tela diante de seus olhos.
Nasceu em 1950 em uma família de classe média. A última de quatro irmãos. Só ela de menina. Sua mãe fazia tudo para que ela, uma bela garota, tivesse tudo. Deu a ela uma educação esmerada, roupas lindas, um bom colégio. Queria que ela estivesse à altura de frequentar o melhor da sociedade e quem sabe, fazer um bom casamento.
Seus pais levavam uma vida modesta, mas queriam que os filhos tivessem melhor sorte e os incentivava a estudar para ser alguém na vida.
Teve uma linda festa de quinze anos.
Aos dezoito anos conheceu Samuel, filho de um empresário milionário. Ele tinha trinta anos, era solteiro, inteligente, interessante e tinha uma cultura invejável. Já tinha viajado quase o mundo todo e lhe contava lindas histórias. Ela ficou encantada com ele. E ele se encantou com sua beleza, elegância, educação e simpatia.
Começaram a namorar. As famílias aprovaram o namoro e até incentivavam.
Samuel tinha muitos amigos e um amigo de infância, de quem não se separava. Mas Cássia não se importava com aquela amizade.
Dois anos depois eles se casaram em uma cerimônia bela e sofisticada. O pais dos noivos estavam radiantes com a união. E Cássia estava à altura do mundo de luxo e requinte de Samuel.
Foram morar em uma casa linda, cheia de conforto e luxo. Ela era tratada como uma rainha. Mas sentia que Samuel não estava muito entusiasmado com o casamento.
Era um pouco frio, embora fosse carinhoso e fizesse todas as suas vontades.
Faziam lindas viagens, ele lhe dava jóias, frequentavam festas e eventos e todos achavam que era o casal perfeito. Ela se acostumou com sua frieza e o pouco entusiasmo dele nos momentos mais íntimos. E se sentia feliz.
Ela queria muito ser mãe, mas o bebê não vinha. Eram cobrados pela família por não lhes dar um neto. Mas não se importavam. Tinham uma vida boa.
Quinze anos depois a mãe de Samuel faleceu. Foi uma perda difícil pra ele e o seu amigo de infância estava presente ajudando Cássia a confortá-lo.
Cinco anos depois o pai dele também faleceu. Ele e seus dois irmãos, que já trabalhavam com o pai, assumiram os negócios. Ele começou a chegar em casa tarde e Cássia se ressentia da ausência constante dele, mas entendeu que estava em uma fase de transição.
Um ano depois fizeram uma bela viagem à Europa e ela estava feliz e pensando que tudo estava voltando ao normal.
Voltaram da viagem e ele continuou a voltar tarde para casa e se desinteressar mais ainda por ela. Ela começou a pensar que ele tinha encontrado uma outra mulher. Tentava conversar com ele, mas ele sempre fugia do assunto.
E naquela noite gelada de inverno ele chegou em casa mais cedo.
-Preciso conversar com você.
-Eu já imagino qual é o assunto.
-Não, você não imagina.
-Então fale.
-Não pense que é fácil pra mim. Mas eu já estou com cinquenta e três anos. Não posso mais adiar…
-Adiar o quê?
-Cássia, enquanto meus pais eram vivos eu os respeitei. Deixei de viver e ser feliz por causa deles.
-Como deixou de viver e ser feliz? Você nunca foi feliz ao meu lado?
-Eu gosto muito de você. Você é uma mulher fantástica, lindíssima, gosta das mesmas coisas que eu. Gosto muito de conversar com você, de viajar, de me divertir ao seu lado. Você sabe o quanto eu lhe tenho carinho, respeito e admiração.
-Mas não me ama, é isto?
Ele se calou.
-Você ama outra mulher? Tem outra?
-Não. Não é isto.
-Diga o que é, Samuel. Não fique aí enrolando. O que tem que ser dito é melhor que seja logo.
-Eu juro que não queria lhe magoar nunca. Mas eu não posso mais adiar as coisas.
-Pois fale logo.
-Eu sou apaixonado pelo Nando.
-O quê? Eu não acredito nisto. Você é apaixonado pelo seu melhor amigo? Que brincadeira é essa?
-Não é brincadeira. Na verdade eu sempre quis estar com ele, mas meus pais nunca aceitaram e eu nunca tive coragem de ir contra a vontade deles.
-Você se casou comigo pra manter as aparências? Você sempre me traiu com seu melhor amigo? Que coisa mais sórdida. Eu não merecia isto. Eu não merecia ser enganada desta maneira covarde. Por certo, todos sabem disto e riem de mim pelas costas, não é? Por isto a sua frieza comigo na cama desde o princípio. Você nunca quis estar comigo, apenas cumpria seu papel de marido, quando não dava pra fugir.
-Eu sinto muito, Cássia. Você não merecia tudo isso.
-Você sente muito? É tudo o que você tem a me dizer depois de vinte e um anos me enganando?
-Desculpe. Eu não sei o que dizer.
-Se seus pais não tivessem morrido você teria continuado me enganando. Eu fui traída a vida toda. Eu sempre amei você e fiz tudo o que pude pra lhe fazer feliz.
-Eu também lhe dei tudo o que podia dar pra que você fosse feliz.
-Deu tudo, menos amor e respeito. Você acha que jóias, viagens, luxo, bens materiais são suficientes pra compensar a falta e amor e respeito?
Ela começou a chorar.
-Não chore, Cássia, não posso lhe ver chorando.
-Vá pro inferno. O que você pretende? Manter um amante fora de casa e uma mulher pra mostrar para a sociedade?
-Eu quero a separação. Não vou mais desrespeitar as duas pessoas que eu mais amo neste mundo. Não vou mais manter esta situação com você e com ele.
-Você tem a cara de pau de dizer que eu sou uma das pessoas que você mais ama neste mundo?
-Sim. Na medida do possível eu amo você.
-Eu vou embora desta casa. Estou sentindo asco de tudo aqui.
-Nós somos casados com separação de bens. Mas eu não vou desamparar você. Vou lhe dar um bom apartamento, alguns imóveis e dinheiro para que você possa sobreviver no mesmo padrão que vive comigo.
-Eu não quero esmolas suas. Se não tenho direito a nada, eu vou sem nada.
-Eu não vou deixar isto acontecer. Você foi minha esposa por vinte e um anos e não tem culpa de nada. Eu só quero que você não diga nada desta nossa conversa pra ninguém. Nem pra sua mãe. Ninguém precisa saber das minhas preferências.
-Vai continuar vivendo de aparências? Estamos a uma década do Século XXI, seja quem você realmente é. Ponha de lado a sua covardia e assuma sua sexualidade.
-Isto é um problema meu. Eu vou lhe dar tudo o que você merece e precisa pra viver bem, mas quero o seu silêncio.
-Está comprando meu silêncio? Ou está pagando pelos vinte e um anos que eu servi de escudo para esconder sua homossexualidade?
-Não vamos encarar assim. Estou lhe dando o que é justo. Você fica aqui enquanto não resolvemos os aspectos legais, enquanto eu não transfiro os imóveis pra você.
-Eu não fico aqui mais nem uma noite. Vou embora hoje mesmo. Você tem idéia do quanto eu lhe amei e amo? Eu não merecia ser enganada assim. Você não imagina o que estou sentindo. Um misto de tristeza, mágoa, indignação, decepção.
-Se puder, me perdoe um dia. Meus pais praticamente me obrigaram a um casamento. Tentavam de todas as formas me separar do Nando. Eles desconfiavam, acho que no fundo sabiam. Mas se eu fosse amar e desejar uma mulher, esta mulher seria você.
-Isto não é um consolo. Você poderia ter me perguntado se eu aceitava um acordo de me casar com você pra ser sua boneca de luxo e ser apresentada à sociedade. Seria mais digno e você não seria obrigado a dividir uma cama comigo e nem cumprir suas obrigações conjugais, que por certo não queria cumprir.
Ele ficou em silêncio e ela disse:
-Vou pegar algumas coisas e vou para um hotel. Depois volto pra pegar minhas coisas.
-Não precisa sair desta maneira.
-Não consigo ficar aqui nem mais uma noite.
Ela saiu, pegou suas coisas e saiu. Não se sentia em condições de dirigir, precisava respirar.
Já no hotel ela chorou até lavar sua alma. Sentia-se ultrajada, ferida, traída.
No dia seguinte, já mais calma, pensou no acordo que ele lhe ofereceu e decidiu que tinha direito a uma indenização. Ela anulou sua vida por ele. Não cursou faculdade, não trabalhou e não podia ficar prejudicada.
Fizeram o acordo, divorciaram e ela seguiu sua vida. Depois de se recuperar do que lhe aconteceu, ela continuou com seu trabalho social e voluntário e se entregou ainda mais a ele pra não pensar.
Não sabia se um dia conseguiria perdoar Samuel.
Não sabia se um dia iria amar novamente. Deixava isto por conta do destino. Apenas vivia um dia de cada vez sem se preocupar com o que a vida ainda iria lhe reservar.