EM APUROS

O Santana coberto de poeira que estacionou ao lado da única bomba de gás do Posto

Solitário, não era da região.

Disso Antônio sabia muito bem. Ele conhecia praticamente todo morador da pacata

Vila Verde (principalmente os que possuíam automóvel), e aquele Santana não

pertencia a ninguém que ele conhecesse, então manteve-se atento atrás do balcão

mastigando seu chiclete. Acompanhou a porta do carro se abrir devagar, até que uma

cabeça seguida por um corpo magricela saiu lá de dentro. O sujeito era de estatura

normal e usava óculos. Seus cabelos eram finos demais, e seu cocuruto ficou à mostra

quando ele olhou para o outro lado. Antônio contornou o balcão e saiu até a rua, não

desgrudando os olhos do sujeito, que só foi notar a sua presença quando já estava

diante do capô.

— Precisa abastecer? — perguntou o dono do posto, e quando ouviu a sua voz, o

sujeito de óculos virou-se prontamente. Ele parecia nervoso, o rosto suado nas

bochechas e na testa.

— Na verdade, estou perdido. Vinha pela rodovia e preferi utilizar o desvio. Poderia

me dizer que lugar é este?

— Vila Verde — falou Antônio, analisando o veículo como se fosse um guarda de

trânsito. — Para onde estava indo?

O homem pareceu pensar por uns quatro segundos antes de responder.

— Pedra Negra. Meu irmão e a família dele vivem lá. Meu sobrinho está de

aniversário hoje, estou indo visitá-lo.

— Vai precisar abastecer se quiser chegar lá. A estrada é longa, sem contar que ainda

falta muito até voltar para a rodovia.

O homem coçou o pescoço e perguntou se havia algo para beber. Queixou-se do calor

e espiou disfarçadamente para dentro do veículo, um gesto sutil que chamou a

atenção de Antônio.

— Tenho apenas água e refrigerante, — disse o dono do posto.

— Aceito a garrafa de água. Refrigerante é um veneno traiçoeiro, o senhor deve saber.

Antônio forçou um sorriso e pediu que o sujeito lhe acompanhasse. O homem olhou

em volta (apenas o vapor subindo pelo asfalto em ambas as direções), e em seguida

tornou a espiar o automóvel.

— Não vão roubá-lo, se é este o seu medo — falou Antônio — Ninguém por essas

bandas mexe com o que não é seu.

O sujeito sorriu sem jeito e avançou na direção da loja do posto.

— Desculpe, não quis parecer desagradável.

Ele andou devagar e por mais de uma vez olhou para trás, desconfiado, com medo ou

com todas essas coisas que pessoas que estão fugindo costumam fazer. Aquele tipo de

gente não aparecia por ali nem por toda Vila Verde, e o sinal de alerta acendeu na

cabeça de Antônio, que olhou novamente para o veículo e conseguiu reparar em uma

coisa que tinha passado despercebida anteriormente. Bem próximo do farol direito,

misturado em meio à poeira, ele viu o que parecia uma mancha de sangue.

Dentro da modesta loja do Posto Solitário, Antônio posicionou-se atrás do balcão e

procurou com os olhos o seu celular.

Encontrou-o ao lado de seu bloco de notas e puxou-o mais para perto, enquanto

observava o estranho caminhando pela loja, olhando para tudo. Ele parecia estar com

dificuldade para encontrar a geladeira, mesmo ela estando completamente visível no

final do corredor.

— O senhor tem um bom estabelecimento por aqui, — ele disse, sem se virar.

Caminhou até a geladeira e retirou de lá uma garrafa de 500 ml de água, que abriu e

bebeu quase inteira ali mesmo.

— Estava mesmo com sede — falou Antônio, esticando o braço e ligando seu velho

rádio de pilha. Primeiro ouviu-se apenas estática, mas assim que seus dedos giraram

com cautela o rechonchudo botão ao lado do rádio, a voz do locutor apareceu falando

sobre o calor, política e a sempre irrelevante alta do dólar. Quando sua atenção

voltou para o estranho, ele já estava bem na sua frente, com aquele rosto suado e

(agora mais perceptível), ranhura próxima a uma das orelhas. Era um arranhão

pequeno, algo que você faria a si mesmo ao coçar um pouco mais forte, ou se deixasse

seu gato brincar muito perto de seu rosto. Contudo, aquela marca somada a possível

mancha de sangue ao lado do farol do automóvel… bem, Antônio já estava pensando

sobre tudo aquilo e procurava não demonstrar que estava.

— Dois e cinquenta, — falou, e após pensar a respeito, o estranho enfiou a mão no

bolso de sua bermuda jeans e tirou dali uma nota amassada de cem, que jogou sobre

o balcão.

— Vou abastecer também — o estranho disse. — Resolvi seguir o seu conselho.

— É uma boa escolha. O próximo posto fica a uns trinta quilômetros. Depois dele,

ainda vão faltar mais dez para Pedra Negra.

O dono do posto puxou a nota e colocou-a na gaveta do caixa, que fez um ruído

horroroso quando foi aberta. Estava prestes a dizer alguma coisa quando o locutor da

rádio interrompeu sua notícia sobre o trânsito para falar sobre um caso ocorrido há

cerca de quatro horas, na cidade mais próxima. A voz do locutor revelou que um

homem chamado Fernando Borges assassinou a esposa a golpes de faca, tentou atear fogo na casa e fugiu com sua filha de apenas sete anos. Em uma fuga alucinada pela

Rodovia 367, o homem furou o bloqueio na estrada e quase atropelou um policial. As

autoridades emitiram um alerta para todas as regiões próximas, e que certamente o

foragido havia trocado de veículo durante sua fuga, pois haviam encontrado seu

Corsa abandonado às margens de uma estrada secundária cercada pela mata. O

locutor estava começando a falar sobre as características físicas do suspeito quando

uma onda de estática atingiu o rádio, fazendo com que Antônio soltasse um palavrão

e lhe agarrasse nervoso, começando a sacudi-lo. O estranho seguia olhando para ele,

como se estivesse esperando por algo. Talvez por um ataque surpresa, um jato de

spray de pimenta diretamente nos olhos ou simplesmente aguardava o convite para

que fossem até o lado de fora para abastecer o carro. Não havia como saber o que de

fato aquele homem estava pensando, com seu rosto arranhado (um tapa de defesa de

sua esposa morta, talvez), e seu semblante às vezes desconfiado, às vezes nervoso.

Tentando não demonstrar a sua preocupação, Antônio abandonou o rádio e pediu

para que o estranho o acompanhasse até a rua.

O sujeito não disse nada, virou-se e começou a andar. Antônio fez o mesmo, então

lembrou-se de seu celular e fez um movimento brusco para pegá-lo do balcão, algo

que acabou derrubando seu rádio, que caiu pesadamente no chão e espalhou suas

pilhas. O estrondo da queda fez com que o estranho virasse para ele e perguntasse se

estava tudo bem.

— Está, é claro — disfarçou Antônio, que guardou o celular no bolso traseiro de seu

macacão na esperança de não ter sido notado. — Essa porra acabou caindo. Acho que

vou precisar de um rádio novo.

— Parece que sim.

Após um instante incômodo de silêncio, Antônio engoliu a seco e começou a se

dirigir até a rua, com o estranho fazendo o mesmo logo a sua frente. Já do lado de

fora, o calor atingiu-os com força, baforadas quentes de vento que sufocavam e

faziam a boca se sentir seca. Como forma de tentar descobrir um pouco mais,

Antônio diminuiu a passada e avaliou o Santana de um ângulo mais aberto, de modo

que conseguia enxergar o automóvel inteiro, com sua poeira que cobria até o teto.

Quando chegou mais perto, espiou na direção do que parecia uma mancha medonha

de sangue. Ao erguer o olhar, encontrou os olhos do estranho apontados diretamente

para os seus, o que acabou lhe causando um calafrio.

— Foi um cachorro, — ele disse, e Antônio não entendeu.

— Como é?

— O sangue que não para de olhar é de um cachorro. Ele se atravessou na frente do

carro e não consegui desviar. — O estranho encarava a mancha avermelhada com

verdadeira tristeza. Então, sacudiu a cabeça e olhou para Antônio, que mantinha

uma certa distância. — Bem, encha o tanque que preciso dirigir muito ainda. O que

não fazemos por uma mulher, não é mesmo? Dirigir quase o dia todo para um

simples encontro.

O dono do posto apenas exibiu os dentes em um sorriso fraco, sentindo o estômago

quase desaparecer dentro de si, o corpo arrepiar apesar do calor e a cabeça quase se

desprender do pescoço, pensando, arquitetando seus próximos passos porque tinha certeza absoluta que aquele estranho dissera que estava indo para o aniversário do

sobrinho alguns minutos atrás, não dissera?

Fosse como fosse, Antônio precisava manter a calma. Não ajudaria em nada cometer

algum deslize, apontar o dedo e acusar, correr o risco de ser atacado por aquele

homem. Ele talvez possuísse uma faca escondida no porta-luvas ou debaixo do

banco. A mesma faca que utilizara para assassinar a esposa algumas horas atrás. O

locutor dissera que a filha de sete anos do casal havia sido raptada e aquilo agravava

ainda mais aquele cenário, deixava Antônio com o corpo inteiro em alerta.

Ele retirou a mangueira de combustível do encaixe da bomba e começou a andar na

direção da traseira do automóvel. Tentou enxergar a garotinha amarrada no banco

traseiro, com uma mordaça na boca, mas tudo que viu foi o banco vazio. Sentindo-se

trêmulo, espiou para trás e viu que o estranho olhava para ele, acompanhava cada

passo seu com dedicada atenção.

— Que coisa mais doida, não é? — comentou Antônio, já começando a abastecer o

tanque do Santana.

O estranho não entendeu. Ficou apenas olhando, aguardando a sequência daquele

comentário.

— O sujeito mata a própria esposa, foge de casa e ainda sequestra a filha. Para onde

este mundo está caminhando, afinal?

— Acho que Deus simplesmente cansou — opinou o estranho, limpando as lentes dos

óculos com um lenço pequeno. — Até para ele a paciência termina, então nós,

humildes mortais, sofremos as consequências. Recebemos terremotos, tempestades

devastadoras e outras fúrias. Mas sabe qual é a pior ira de Deus? É a loucura do ser

humano. Ele gira uma chave na nossa cabeça e pronto! Viramos máquinas de guerra,

cegados pela insanidade.

A conversa do estranho parecia revelar muito mais do que ele pretendia, o que fez

com que Antônio passasse a considerar a possibilidade dele não ser o mesmo sujeito

que estava foragido. Havia a mancha de sangue um pouco acima do para-choque de

seu carro, o jeito esquisito dele se portar, olhando aflito para todos os lados sempre

que podia e (o mais importante), o arranhão próximo a sua orelha. Todas essas

circunstâncias poderiam ser apenas coincidências aleatórias, aquele tipo de situação

que derruba você da cadeira depois de um tempo, e, até o momento, não havia uma

prova realmente concreta de que aquele sujeito fosse o assassino procurado. Antônio

já começava a sentir-se culpado por julgar um homem daquela maneira, por ser

levado quase a um estado de paranóia pelo próprio medo, quando lembrou-se da

mentira contada por aquele estranho. Primeiro, ele disse que estava indo para Pedra

Negra visitar o sobrinho; depois mudara a história, e agora a razão de sua viagem era

por conta de um encontro com uma garota. Às vezes um homem sente vergonha da

própria personalidade, detesta admitir o papel que está disposto a fazer apenas para

tentar conquistar uma mulher, e Antônio adoraria que esse fosse o caso daquele

sujeito — embora alguma coisa dentro de sua cabeça estivesse gritando exatamente o

contrário.

Terminou de encher o tanque e devolveu a mangueira para seu lugar, quando enfim

obteve uma ideia relevante.

— Que tal dar uma lavada no carro? Não vou cobrar por isso. E, desculpe a

honestidade, mas esse possante está precisando de um banho.

O estranho avaliou aquela proposta olhando para o carro e em seguida para Antônio.

O vento quente lhe atingia pelas costas, fazendo com que seu cabelo fino se movesse

de uma forma engraçada. Ele avançou um pouco para frente (pareceu encarar a

mancha de sangue), então segurou o queixo e olhou abruptamente para trás quando

outro automóvel cruzou pela estrada em alta velocidade. Seu rosto pareceu ter o

sangue drenado, o estranho ficou pálido e finalmente ele lembrou-se de que não

estava sozinho por ali. Olhou rapidamente para o dono do posto e por um instante

pareceu que ele entraria correndo em seu carro. Ele não fez aquilo, apenas ajeitou os

óculos e tentou parecer mais calmo.

— Estou com um pouco de pressa, sabe? — falou, deslizando as mãos pelas laterais

das pernas.

— Vai ser rápido. Em menos de dez minutinhos esse possante estará novinho em

folha.

Antes que o estranho pudesse dizer mais alguma coisa, Antônio enveredou para o

lado onde ficava a mangueira que usava para lavar caminhões, já puxou ela do

gancho e ligou o registro, fazendo com que a água começasse a escorrer e a empossar

pelo chão.

Precisava segurar aquele sujeito por ali o maior tempo possível. Se conseguisse, logo

alguma viatura iria surgir e dar cabo de toda aquela situação. Ele prestaria um rápido

depoimento, receberia os parabéns da polícia e veria uma criança ser salva. Na

sequência, iria retornar para trás do balcão, tentaria consertar o seu rádio e deixaria

que o dia seguisse como todos os outros, devagar e sem surpresa alguma. Arrastou a

mangueira até a traseira do carro, começou a molhar sem muita potência e quando

abaixou-se para esfregar a esponja na altura do pneu, teve certeza de ter escutado um

som abafado, como se alguém tivesse dado um pontapé no interior daquele

porta-malas.

Foi bastante difícil não demonstrar o espanto que estava sentindo, mas Antônio se

esforçou ao máximo para aquilo.

Seu corpo recuou apenas alguns centímetros para trás e ele imediatamente olhou

para o estranho, esperando encontrá-lo de vigia ao seu lado, mas não foi o caso. O

homem não havia percebido nada e se mantinha observando a estrada, como se

esperasse a aproximação de alguma viatura.

Antônio aproveitou para aproximar o rosto um pouco mais do automóvel e seu

instinto implorou para que não escutasse coisa alguma daquela vez. Em dado

momento um ruído baixo pareceu acontecer ali dentro, porém não deveria ser nada e

Antônio procurou convencer-se de que o barulho anterior havia sido um produto

fabricado pela sua imaginação assustada. Esfregou a esponja bem próxima da

abertura do porta-malas e quase conseguiu enxergar ele se abrindo com violência, com o próprio Antônio caindo de traseiro no chão, apavorado, seus olhos

esbugalhados acompanhando o rosto atordoado de uma menininha surgindo do

interior do porta-malas, gritando por ajuda. Aquela imagem fez a mão que segurava a

mangueira tremer um pouco e a água espalhou-se de forma irregular, molhando suas

botinas.

Ao erguer o rosto para ver o que o estranho estava fazendo, assustou-se ao vê-lo bem

ao seu lado, lhe encarando.

— Está quase pronto — falou Antônio, temendo não estar interpretando muito bem.

— Parece assustado. Está tudo bem?

— Está, é claro. Estava pensando na droga do meu rádio. Vai dar um trabalho dos

infernos arrumar aquela coisa.

— Sei. Escute, não está pensando besteira sobre mim, está?

A reação de Antônio foi primeiro arregalar os olhos e depois sorrir nervosamente,

quase como se gaguejasse.

— Sobre o que está falando, homem?

— Não sei ao certo, mas desconfio que esteja pensando bobagens. Desde que escutou

aquela notícia no rádio você está agindo esquisito.

— Acho que o calor está prejudicando sua forma de pensar. Assim que terminar aqui,

pode entrar em seu carro e sumir.

O estranho avançou um único passo para frente, muito sutil, o suficiente para que

Antônio visse o seu celular caído ao lado de seu pé. Ele tentou não demonstrar sua

recente descoberta, procurou manter o foco do estranho apenas nele, recuando o

mesmo centímetro que o sujeito avançou. O celular deveria ter caído de seu bolso no

momento em que estava abaixado esfregando próximo ao pneu, e aquele susto ao

escutar o ruído vindo do porta-malas, o fez recuar de maneira brusca, fazendo com

que seu celular…

— Por acaso anotou a placa do meu carro? — Questionou o estranho. Sua fisionomia

adquirira um ar de irritação, sua testa estava franzida e sua voz mantinha-se calma,

uma mistura maluca de sentimentos que confundiam a Antônio.

— Que merda está dizendo?

— Vamos parar com esse fingimento, certo? Está na hora de dar o fora deste fim de

mundo. Já perdi tempo demais com você.

Neste instante o estranho afastou-se, abriu a porta do carro e Antônio o viu se

abaixar. Segundos depois seu corpo ficou ereto e o que o dono do posto viu naquele

rosto o fez soltar a mangueira e sentir o coração disparar. O estranho exibia um

semblante alucinado, os dentes amostra, uma fúria doentia no olhar. Ele contornou a

frente do automóvel quase correndo, avançando como um predador faminto, e foi

então que Antônio enxergou a faca na mão dele, uma lâmina grande coberta de

sangue.

Em questão de segundos, o estranho já estava bem na sua frente, o rosto

enlouquecido e o braço erguido empunhando a faca.

Antônio não teve tempo de uma reação mais expressiva, então o que fez (o que teve

tempo de fazer), foi jogar a mangueira na direção do maníaco e torcer para que ele de

alguma maneira se enrolasse nela e tropeçasse. Sua esperança aumentou

gradativamente quando o pé esquerdo do sujeito pareceu tropeçar na mangueira,

obrigando-o a diminuir o ritmo dos passos, mas aquilo durou muito pouco. Logo o

maníaco recuperara seu trote, partindo para cima mais enfurecido ainda, rosnando

como um cão e obrigando Antônio a começar a correr na direção oposta.

O dono do posto quase tropeçou nas próprias pernas, avistou a entrada da loja de

conveniências e acelerou para ela o mais rápido que pôde, a boca arreganhada e o

olhar aterrorizado.

Parecia estar ganhando uma certa vantagem e estava quase atravessando a porta

dupla de vidro quando sentiu uma pontada nas costas. Foi uma dor que esquentou o

seu corpo inteiro e o fez voar sobre a porta, tendo apenas segundos para erguer as

mãos para proteger a cabeça.

Sua queda causou um estrondo no vidro e Antônio gritou, tentou se levantar e teria

conseguido não fosse a segunda facada que levou na altura do ombro. Aquela doeu

muito mais do que a anterior, foi possível sentir a lâmina raspando em seu osso.

Como um último esforço para se manter vivo, Antônio girou o corpo com o braço

aberto e acertou o rosto do estranho, que resmungou e lhe acertou de raspão a

lâmina da faca na lateral de sua mão. Antônio agarrou a lâmina e aquela dor explodiu

diante de seus olhos, seu sangue escorreu pelo seu pulso e começou a gotejar em seu

peito.

O maníaco parecia estar sorrindo, mas na verdade estava irado, montado sobre a

barriga de Antônio tentando lhe cortar a mão inteira assim como se corta um filé.

De uma maneira desajeitada, Antônio conseguiu utilizar a sua perna e em seguida o

seu pé para empurrar aquele psicopata para trás. O estranho caiu mas não ficou no

chão por muito tempo.

Ele levantou-se rapidamente e conseguiu acertar uma facada na panturrilha de

Antônio, que viu pontinhos negros de dor diante dos olhos. Aterrorizado, rastejou

pelo próprio sangue e avistou a sua improvável salvação a poucos metros de

distância; seu rádio permanecia caído ao lado do balcão, suas quatro pilhas

espalhadas ao redor, vítimas daquele tombo.

Ele se esforçou para avançar pela cerâmica ensopada de sangue, utilizou os dedos

como ferramentas de impulso, sentiu o corpo inteiro implorar para que parasse, mas

ele não podia, não se quisesse continuar respirando. Um grito alucinado ecoou atrás

de si e uma nova facada lhe atingiu em algum lugar de suas costas. Um som úmido

foi ouvido assim que a lâmina saiu. Antônio conseguiu esticar o braço direito e após

dar um grito de dor e de vitória, agarrou o seu rádio e usou suas últimas forças para

girar o corpo e acertar em cheio a testa do sujeito, que se abaixava em sua direção

com a faca apontada para o seu peito. Ele ficou parcialmente zonzo, deixou a faca cair

e segurou a cabeça com as mãos.

— Filho de uma puta! — gritou, outra vez sentado sobre Antônio enquanto aguardava

a sua visão normalizar.

Com dificuldade (e sentindo seu corpo se entregar), Antônio tateou o chão com os

dedos até sentir o cabo da faca. Agarrou-a firme e a levou o mais depressa que

conseguiu até atingir o estranho com a lâmina. O sujeito gritou e tombou para o lado,

agonizando. Quando Antônio conseguiu recuperar o fôlego, virou-se devagar para

olhar para aquele monstro. Ele parecia estar morto, com a faca cravada na altura das

costelas. Muito devagar, Antônio começou a rastejar de volta para rua. Seu macacão

estava molhado de sangue e o cheiro começava a enjoá-lo.

Após alguns metros de dor e cansaço, enfim alcançou o celular. Digitou 911 e

aguardou a moça lhe perguntar qual era a emergência.

— Estou ferido, — falou devagar, poupando o fôlego. — O sujeito que estão

procurando me atacou. Ele…

Lembrou-se da menina. Era ela quem fizera aquele barulho que escutara minutos

atrás. Sentindo-se zonzo, precisou se apoiar no automóvel para conseguir se levantar.

Cambaleou por toda a extensão do veículo até abrir a sua porta, pegar a chave e

retornar aos tropeços até a sua traseira.

A voz da atendente lhe perguntava qual era a sua localização, mas Antônio não estava

escutando, queria apenas abrir aquele porta-malas. Guardou o celular em seu bolso

ensanguentado e a voz da mulher foi abafada ainda mais. Com dificuldade, enfiou a

chave na fechadura e a girou.

Ouviu-se um clique e o porta-malas se ergueu apenas um pouco. Utilizando a mão

que não estava cortada, Antônio levantou o restante da porta e seus olhos se

encheram de água. A menina estava amarrada nas mãos e nas pernas. Seu rosto

possuía um hematoma na região da bochecha e havia uma mordaça lhe cobrindo a

boca. Os olhos dela giravam em todas as direções, confusa e em choque.

Antônio abaixou a mordaça de sua boca e a menina soltou um berro agudo,

começando a chorar logo em seguida.

— Vai ficar tudo bem, — prometeu Antônio, retirando o celular do bolso e o levando

novamente até a orelha. — Alô? Ainda está na linha?

— Estou, senhor. Poderia me passar a sua localização?

Exausto, Antônio deixou o corpo escorregar pelo carro até cair sentado, escutando o

choro horripilante daquela menina, um som angustiante que incrivelmente

machucava muito mais que a lâmina da faca.

Cotidiano Sombrio
Enviado por Cotidiano Sombrio em 19/11/2022
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