ESCRITORES INVISÍVEIS

Bom dia turma!

- Bom dia professora!, responderam em coro uma turma de Educação para Jovens e Adultos, numa cidade qualquer do interior da Bahia.

- Tenho uma proposta de organizar uma antologia com textos da turma. Um livro nosso.

- Mas nem somos escritores?, perguntou um aluno.

- Oxi, nem sei contar direito, falou outro.

- Não sei o quê comi no café da manhã, disse um “fominha”.

Para não perder o controle da turminha a professora se levantou e deu a seguinte explicação:

- Meus caros, a ideia é colocar no papel ideias criativas que possam servir de inspiração para produção literária. Desejo que escrevam sem senso crítico, sem preocupação gramatical ou concordância. A tarefa é colocar no papel uma mensagem com um emissor, um receptor, um título e qual a ideia do texto. Frases que marcaram. Que incomodam o "eu interior". Todos, se desejarem, podem escrever sem se identificar, sob pseudônimo. Ao final da tarefa irei recolher a folha com os textos. Depois irei devolver esse texto para que escrevam uma poesia, conto, letra de música, crônica, piada, fábula ou o que desejar.

- Professora, isso não vai dar certo. Posso vomitar os sapos que engoli?

- Devemos!, uma das finalidades da escrita é ser terapêutica. Não fiquem engessados. Pode ser uma fantasia ou ficção. O gênero é livre.

Enquanto os alunos usavam a imaginação para rascunhar alguma coisa, a Professora escrevia no quadro alguns elementos que poderiam constar de um texto narrativo, vejamos:

“Personagens, quais seus objetivos, quais conflitos, o tempo, o enredo, o espaço, o clímax, a ambientação e todo aquele conteúdo poético desde os tempos de Aristóteles.”

Dos dezoito alunos da turma, apenas dez conseguiram produzir seus textos, conforme a tarefa. A professora recolheu as folhas e na próxima aula faria a análise de uma parábola para servir de inspiração aos seus cupinchas.

No dia seguinte, a professora entregou uma cópia da Parábola do Bom Samaritano (descrita em LUCAS 10: 25-37) para cada aluno.

- Filhos de Deus, darei dez minutos para que todos leiam. Em seguida, irei analisar a parábola para que compreendam como é escrito um texto narrativo.

E continua, prestem atenção aos elementos desse texto bíblico:

1º - Ensinamento (motivação): O que fazer para herdar a vida eterna?;

2º - Tópico frasal (tese): Amar teu próximo como a ti mesmo;

3º - Questionamento: Quem é o meu próximo?;

4º - Elementos (valor, crença, desejo): arrependimento, compaixão e egoísmo;

5º - Personagens: Doutor da Lei, Jesus (narrador), Sacerdote, Levita, Assaltantes (vilões), Certo homem (provavelmente um judeu) e Bom Samaritano (herói);

6º - Pré-conceito (antítese): Um pobre quase morto não é meu próximo. É impuro tocar em cadáver;

7º - Local (evento, tempo): descia de Jerusalém para Jericó;

8º - Conflito (obstáculo, dificuldades): Assaltado, espancado e abandonado quase morto;

9º - Omissão (crítica): Passou o Sacerdote, depois o levita e ambos ignoram o homem caído; seguiram adiante pelo outro lado;

10º - Paradoxo (dualidade): Apesar do Samaritano ser odiado pelo povo judeu, ajudou um ferido;

11º - Crítica ao paradoxo (castigar os costumes, contradição, fato inusitado): O sacerdote e o levita pregavam no templo, mas só o samaritano foi exemplo de compaixão;

12º - Ato heroico (reação a omissão): Parou e ajudou um ferido no caminho;

13º - Solução (ações de continuidade do ato heroico): deu água, cuidou dos ferimentos, pagou sua hospedagem e tratou como queria ser tratado;

14º - Reflexão: Qual dos três foi o “próximo” do homem que caiu na mão dos assaltantes?;

15º - Insight: Aquele que usou de misericórdia para com ele;

16º - Catarse (valor terapêutico): Qualquer pessoa que precisar de ajuda é o próximo;

17º - Síntese (a descoberta) Ajudar um estranho ferido, demonstra amor a Deus e ao próximo, agrada ao Senhor fazer o bem sem olhar a quem;

18º - Desfecho: Para alcançar a vida eterna deve-se amar ao próximo, ou seja, quem precisar de ajuda; e

19º - Moral da história: Um coração bondoso e misericordioso é a maior riqueza. Fazer o bem é ser filho de Deus.

- Meus caros, agora que conhecem os elementos que compõem uma narrativa, quem não escreveu está atrasado, mãos à obra! Irei devolver os textos – e foi chamando por pseudônimos (garçom, boca miúda, subalterno, dizimista...) - e todos devem tentar melhorar. Darei vinte minutos para me devolverem.

Ao final da aula, a professora recolheu todos os textos, levou para casa para digitar e ficou da seguinte forma:

Texto nº 1

Do: Mula estratégica

Ao: Cavalos de Napoleão

Título: Golpe de visão turva

Ideia: Mulas estratégicas carregaram o peso do Exército Napoleônico e os cavalos que foram eternizados nas telas pintadas a óleo do General Pacificador Francês. Preconceito ou jogada de marketing?

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Texto nº 2

Do: Carrasco

Ao: Condenado a pena de morte

Título: A culpa é dos hormônios

Ideia: Ser borderline virou status virtual. Quem está em cima do muro que pule. Não importa quem morreu, os sensacionalistas querem visibilidade. Bem que Freud tentou, mas alguns crimes só a biologia explica. A solução pode ser química: veneno, castração ou remédio. Drogue-se com moderação.

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Texto nº 3

Do: Betado

Ao: Abestado

Título: Pior que está pode ficar

Ideia: Faz-me rir com seu dinheiro que te faço chorar sem o seu. Quebre a banca, mas não quebre a cara! O golpe no bolso dos outros é refresco.

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Texto nº 4

Do: Encabrestado

Ao: Monarquista

Título: A política está no sangue

Ideia: Ganhar uma eleição devido ao peso do sobrenome de uma família de políticos é democracia ou uma dinastia real?

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Texto nº 5

Do: Boca miúda

Ao: Caôzeiro

Título: Engodo do negócio

Ideia: BMW, Mercedes-Benz e Toyota precisam pagar por propaganda em horário nobre na TV para que seus carros sejam objetos de desejo? Que adianta ser a oitava maravilha do mundo e dever bilhões em impostos por causa dos amigos de partido. 

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Texto nº 6

Do: Fumante pacífica

Ao: Zumbi fumegante

Título: Queime o capital

Ideia: A Sobrevida de um fumante é droga, doença ou diversão? Já que o problema é seu, o custo do Sistema de Saúde é nosso! Fumantes deveriam pagar seguro de vida para custear suas doenças na velhice. Cigarro do Paraguai mata menos que os originais pagadores de impostos, verdade ou Fake News de contrabandista?

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Texto nº 7

Do: Talião

Ao: Doutor da Lei

Título: O crime recompensa

Ideia: Advogado que faz compras no shopping com cartão de crédito clonado entregue por um bandido como pagamento dos honorários é vítima ou estelionatário?

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Texto nº 8

Do: Nobre de espírito

Ao: Viajante de 1ª Classe

Título: Mérito de berço

Ideia: Viajar sentado na janela do avião para estudar nos EUA com tudo pago é meritocracia ou obrigação familiar?

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Texto nº 9

Do: Garçom

Ao: Falsos Líderes

Título: Pergunta ou profecia

Ideia: Quem troca medalha e diploma de “Amigo” por caixas de vinho Gran Reserva apreendido pela Receita Federal é cambista ou estrategista?

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Texto nº 10

Do: Dizimista

Ao: Empresários da Fé

Título: De propósito o inferno está cheio

Ideia: “Deus tem um propósito em sua vida”, quando ouvir esse bordão, fuja! Vão te oferecer um pedaço de terra no céu e terá que pagar com a alma. Obreiros e escravos são sinônimos de uma sociedade corrompida por falta de valores celestiais.

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Texto nº 11

Do: Amante empoderada

Ao: Político em fim de carreira

Título: Rachadinha abençoada

Ideia: Sustentar uma sugar baby sem desfrutar de seus serviços sexuais é tão agravante quanto desviar salário de assessor que não cumpre expediente no parlamento. Caso abençoe uma rachadinha no altar, deixe um mini herdeiro político para perturbar sua ex-mulher no funeral. Enquanto uns choram, outros gemem e alguns riem.

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Texto nº 12

Do: Sombra de panela

Ao: Família cristã

Título: É quase, mas não é

Ideia: Quantas madamas e Luluzinhas andam com as unhas postiças, dormem o dia todo, se alimentam de remédios controlados e reclamam da vida porque se acham “donas” da casa. Come de marmita, mal educam os filhos, contudo, são exigentes com suas escravas domésticas. Importam uma mucama do interior e dizem que é “quase da família”. Diarista boa é a que dorme no plantão. O seu quartinho está guardado - úmido, com direito a TV de tubo e chuveiro quente.

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Texto nº 13

Do: Lutadores diários

Ao: Juízes eternos

Título: Togado no superego repressor

Ideia: Qualquer conflito antes de ser julgado por um deus grego do olimpo deveria ser analisado por conciliadores e mediadores. Deixar nas mãos do juiz pode ser pênalti, cartão vermelho ou jogada de confete na torcida em busca de holofotes. Conciliar e mediar é possível?

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Texto nº 14

Do: Dependente

Ao: Terapeuta

Título: Relação paciente- terapeuta: até que a morte nos separe!

Ideia: O traficante de drogas é um terapeuta que deu errado - não tem conselho de classe e não paga impostos - um derrotado. Muitos desistiram da psicanálise ao descobrirem que a cura vendida não vinha nem em sonhos. “Análise é eterna”, dizem os especialistas e artistas globais. “Pra ciência” meu tênis de rodinha em suas nádegas, dito um pé na bunda, um chiste ou um ato falho?

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Texto nº 15

Do: Pensionista

Ao: Contribuinte

Título: Seu imposto me rende

Ideia: Quantas moças formosas poderiam trabalhar e ganhar a vida com o suor de seus rostos harmonizados com botox, mas vivem às custas de uma pensão herdada legalmente? Enquanto uns carregam o piano, outros ouvem Martha Argerich ou Mozart.

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Texto nº 16

Do: Subalterno

Ao: Chefe vaidoso

Título: Um brinde a “nossa” glória

Ideia: Quem manda fazer algo não quer executar, pois se der errado aponta um culpado e se der certo receberá toda a glória. Um ser vaidoso sempre assumirá a culpa pelos bons feitos dos outros.

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Texto nº 17

Do: Azarada

Ao: Patroa Pilatos

Título: Dei sorte, dou azar

Ideia: Chega às 7h, mas sai às 22h (depois da patroa chegar da academia); Cozinha bolo, panqueca e feijoada, come marmita requentada no micro-ondas; Passeio com o Pet na hora marcada, filhos sobrevivem como vira-latas; Vou ao teatro com casais, dorme no serviço hoje?Estou grávida!, mais um para cuidar! Enquanto uns latem, outros nem um pio.

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Texto nº 18

Do: Masoquista leiga

Ao: Lazarento

Título: Não durmo só

Ideia: Quantas mulheres são vítimas de escolhas infelizes? Antes “mau” acompanhada, que mãe solo. O psicopata dorme ao lado. O sapo kambô quando beijado será o príncipe dos seus fins.

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- Bom dia turma! Iremos produzir um texto com as ideias propostas por vocês. Usem a criatividade e os elementos narrativos que aprenderam.

Um aluno levantou a mão e questionou: “Professora, é tipo uma redação?”

- Não. Redação é um texto argumentativo. Esse é narrativo ou poético.

No meio da aula, muitos ainda estavam nas primeiras linhas. Vendo que pairavam dúvidas a professora resolveu fazer uma dinâmica com a turma.

- Gente, vi que muitos estão com dificuldades, então..., preciso de um voluntário para expor a ideia de seu texto.

- Eu quero!, respondeu um aluno cujo tema era bastante polêmico.

- Política é um tema que nunca sai da moda. Somos usados a cada dois anos, argumentou um líder de grêmio estudantil.

O aluno voluntário foi ao quadro negro e escreveu:

“Do: Encabrestado

Ao: Monarquista

Título: A política está no sangue

Ideia: Ganhar uma eleição devido ao peso do sobrenome de uma família de políticos é democracia ou uma dinastia real?”

A professora pediu sugestões de frases ou ideias relacionadas a política e foi escrevendo no quadro:

“Querem implantar o comunismo no brasil”

“Estamos muito polarizados”

“Só são eleitos ricos e influenciadores”

“Muitas famílias de políticos são donas da imprensa e controlam os meios de comunicação”

“Os falsos profetas venderam a alma dos fiéis para a política”

“Filho de político se elege antes de ter carteira de motorista”

“Depois de se reeleger, os prefeitos colocam seus filhos ou esposa como candidatos e continuam mandando por baixo dos lençóis”

“Os políticos buscam interesses pessoais e querem ser tratados como membros da realeza”

“Tem países que o político não tem regalias como no brasil”

“O abuso de poder econômico é investigado por indicados de quem cometeu o crime eleitoral”

“Cada povo tem os políticos que merece”

“Os donos de partido que mandam no brasil”

“Quociente eleitoral é uma farsa política, votamos em uma Fulana e elegemos Beltrano”

Estas e outras frases politicamente incorretas foram propaladas pelos alunos eleitores.

- Isso é tempestade de ideias ou brainstorming, - disse a professora - agora desejo que cada um faça o mesmo com seus respectivos temas, em casa com seus familiares. Quando forem dormir, anotem em um caderno qualquer ideia que venha à mente.

- Eu não tenho tempo!, disse uma mãe solo de gêmeos.

- Ideias surgem quando menos imaginamos. São lampejos. Devem ser anotadas ou serão esquecidas. Dessas frases iremos extrair os elementos narrativos: personagens, ambiente, conflitos, ironia, soluções, reflexões, etc. Literatura não tem fórmula, mas alguns elementos podem ser seguidos, pelo menos inicialmente. Vamos terminar a tarefa por hoje, e se despediu da turma.

Na semana seguinte, todos tiveram o final de semana para refletir sobre seus textos. A professora deu o prazo de entrega na sexta-feira próxima, de forma que todos tivessem uma semana de produção textual.

No dia marcado apareceu de tudo que foi texto. Muitos textos narrativos interessantes: fábulas, parábolas, contos, crônicas e poesias. Apareceu até letra de música.

- Tur-ma, tô com um pro-ble-ma!, disse entre soluços a professora – conversei com a direção e nossa antologia não será mais patrocinada pela escola. Uma pena.

- Vamos fazer uma vaquinha virtual ou podemos publicar só um e-book independente, sem custos, disse o aluno mais velho da turma.

Todos se animaram com a ideia de vaquinha virtual e até os professores de outras salas contribuíram.

- Agora que fizemos a revisão textual, precisamos de um nome para a antologia. Algum aluno sugere nomes para votação?

- “Escritores Invisíveis”, disse um.

- “Por vias crônicas”, falou outro.

- “Perguntar ofende?”, falou um terceiro.

- Você está perguntando ou isso é uma sugestão?, algum engraçado perguntou ironicamente.

- “Saia da retórica”, surgiu de alguém no fundo da sala. Não convenceu.

- Por enquanto temos três candidatos, então vamos a votação! Cada um coloca no papel o nome preferido e me entrega, por favor, pediu carinhosamente a mestra.

Após o apurado ganhou com 70% dos votos o título ESCRITORES INVISÍVEIS.

- Professora, alto lá! Esse título está errado...

- Mas como? Se fizemos uma votação!

- Ciente, porém há um paradoxo ou no mínimo uma contradição!, bradou um aluno progressista.

- A maioria sempre está certa, foi uma votação justa.

- Concordo, mas fomos induzidos ao erro. O correto seria “Invisíveis Escritores”, argumentou o problemático.

- Na escrita não há certo nem errado, conforme ensinei a vocês.

- Fuja do clichê! Uma agressão a minha inteligência, minha senhora.

A professora, respirou e calmamente fez seu discurso de moral da história: “O título não importa. O importante foi a produção de nossa antologia; todos podem ser escritores e ter a sua voz ouvida. Quando você vota é induzido a escolher e não a questionar as opções, essa é a democracia representativa. Seu argumento é um equívoco, pois quem é invisível não é visto, nem lembrado. A semente foi plantada; através da produção literária podemos refletir o papel da literatura em nossa sociedade.”

“Que venha a noite de autógrafos”, gritou uma voz invisível.

Isaac Machado Azevedo
Enviado por Isaac Machado Azevedo em 17/11/2022
Reeditado em 26/07/2023
Código do texto: T7651981
Classificação de conteúdo: seguro
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