FUNCIONÁRIO DO MÊS

O que se sabia sobre Getúlio Sampaio (além de sua idade, que para todos era entre

40 e 50), era o fato de sua completa dedicação ao trabalho.

Ele tinha uma fidelidade quase matrimonial com o seu emprego, estando a frente do

almoxarifado da empresa de materiais de construção Parafusos & Cia a cerca de vinte

anos, sem faltar um único dia. Seus colegas o viam chegar sempre sorridente,

trazendo uma bolsa sobre o ombro e o crachá com sua foto estampada pendurada no

peito, algo feito na época em que Getúlio ainda possuía os cabelos mais escuros.

Durante o expediente, ele atendia qualquer um que se aproximasse de seu setor à

procura do que estivesse precisando, genuinamente lhe apresentando um sorriso e

um aceno de mão. Na hora do intervalo, quando todos os quarenta funcionários da

empresa se dirigiam até o refeitório, Getúlio chegava normalmente por último e após

encher o seu prato com mais salada do que carne, sentava-se sozinho na última mesa

do lugar.

A mesa ficava de frente para a porta dupla e de costas para os outros, algo que no

início o fez parecer arrogante, mas que ao longo dos anos passou a ser considerado

uma marca única. Todos passaram a compreender o jeito introvertido de Getúlio, a

respeitar a sua solidão e a parar de reparar toda vez que ele fazia uma oração antes de

começar a comer. Ele era o único funcionário dali que chegava uniformizado e não

utilizava o vestiário, pois dizia que aquilo lhe fazia ganhar algum tempo logo que

chegava e também no horário de partida. Aquela dedicação que para muitos era

demasiada um exagero, lhe rendeu o prêmio de funcionário do mês, anunciado no

início da semana e com uma pequena celebração marcada para sexta-feira, por volta

do horário do almoço. Isso fez com que Getúlio passasse a semana inteira sorrindo ainda mais, chegando cinco minutos mais cedo e indo para casa vinte mais tarde, o

que acabou gerando pequenos cochichos acompanhados de risadas por parte dos

demais. Para Getúlio, aquilo não importava. Não era nada que mexia com ele, e o

sentimento por enfim ser reconhecido por toda a sua dedicação superava qualquer

desavença que pudesse ter.

O que importava (para ele como funcionário), era apenas a sua imagem padrão, a

que havia começado a construir a vinte anos assim que fora contratado por aquela

empresa. Durante todos aqueles anos, a vida fez das suas, é claro, como sempre fazia,

mas Getúlio preferiu ignorar absolutamente tudo e seguir trabalhando praticamente

sem parar. O trabalho era muito mais que apenas o seu sustento; era sua rota de fuga

da realidade. Sem aquele uniforme, Getúlio Sampaio era apenas um sujeito de 53

anos, viúvo e com uma filha adolescente bulímica que sofria de ansiedade.

Sua única esposa havia falecido há quatro anos, alguns meses após pedir o divórcio.

Ela era cinco anos mais jovem que Getúlio, e seu amante mais de quinze. Getúlio a

flagrou trepando com aquele sujeito em sua própria cama, fechou a porta do quarto

bem devagar e preparou o jantar.

Serviu a mesa para ele a filha (que estava com apenas doze anos na ocasião),

perguntou como estava a escola e terminaram de jantar praticamente em silêncio.

Em seguida, pediu que a menina fosse para o quarto, lavou a louça e foi até a sala

para assistir ao telejornal. Minutos mais tarde, o amante da mulher com quem estava

casado há quinze anos passou por ele abotoando a camisa, olhando para o chão. Logo

atrás dele surgiu Valentina, apenas de calcinha, fumando seu tradicional cigarro e

com o rosto inexpressivo.

— Guardei um pouco de peixe para você, — falou Getúlio. — Está no forno. Se

procurar direito, consegue encontrar uma cerveja na geladeira.

— Você não liga, não é? — Os olhos de Valentina estavam marejados. Ela se

aproximou e ficou de joelhos diante do marido, que seguia encarando a televisão. —

Tinha um homem fodendo comigo na nossa própria cama e você continua ignorando

a questão! Você só liga para aquele emprego estúpido.

— É melhor começar a comer, ou vai esfriar.

— Vá se foder!

Ela voltou para o quarto e saiu de lá vestida, segurando uma mala e mascando

chicletes. Abriu a porta do quarto da filha, a chamou e disse para se arrumar.

— Para onde estamos indo? — quis saber a menina.

— Para a casa da sua avó.

— Só nós duas?

Valentina olhou para o marido, que ainda assistia televisão.

— Só nós duas, querida.

Elas saíram pouco tempo depois, e a única que se despediu foi sua filha Renata, com

um aceno modesto. Sua mulher disse apenas que os papéis do divórcio iriam chegar

mais cedo ou mais tarde, como de fato aconteceu, o que não fez diferença alguma

para Getúlio, que assinou sem ler uma palavra sequer. Meses mais tarde, ele recebeu

um telefonema da filha, informando que a mãe havia se jogado na linha do trem apósdescobrir uma traição daquele sujeito mais jovem. Getúlio disse lamentar por aquilo

(e não estava mentindo), que iria visitá-la na casa da avó assim que possível. Essa

visita não chegou a acontecer, e foi a filha quem de fato precisou voltar para ele,

depois que sua avó faleceu devido a complicações após uma cirurgia no estômago.

A vida pareceu girar outra vez, devagar, as engrenagens rangeram, até que

finalmente Getúlio percebeu que a filha passou a provocar o próprio vômito depois

de comer.

Atualmente Renata está com dezesseis anos e quarenta quilos, sentindo-se zonza

sempre que precisa levantar, passando a maioria do tempo fuçando em seu

computador depois que voltava da escola. Seu pai não costuma falar muito, e sempre

que a vê vomitar, parece fingir que não viu.

Para Getúlio, toda aquela avalanche de problemas é apenas algo temporário, o tipo

de coisa que sumiria em breve, bastava ter um pouco de paciência.

Na sexta-feira, ele chegaria cedo no trabalho, sorridente, o estômago pulsando mais

do que o normal, algo que o fez marcar uma consulta particular em pleno sábado

passado, em um dia ensolarado e quente.

Os exames iniciais apontaram uma espécie de anomalia em seu fígado (um tumor do

tamanho de uma ervilha), e se aquela coisinha fosse maligna, Getúlio teria de

começar a faltar o emprego, talvez até abandoná-lo para sempre.

A possibilidade o fez agarrar o pulso do médico e fazê-lo prometer que não era nada

muito sério, que abandonar o emprego estava fora de questão. Assim, na sexta-feira,

ele acompanhou a cerimônia de funcionário do mês na primeira fila de cadeiras,

sentindo dores agudas e precisando fazer um esforço tremendo para não demonstrar

aquele desconforto. O chefe geral da empresa, o senhor Ferreira, um homenzinho

baixo e calvo, puxou uma cordinha que fez com que uma pequena cortina caísse e

revelasse o rosto de Getúlio emoldurado em um quadro.

Seu retrato estava perfeito, um sorriso contagiante, um ar jovial que Getúlio adoraria

possuir ainda, mas que sabia ser impossível. Os outros funcionários começaram a

aplaudir, e o senhor Ferreira falou algumas palavras incentivadoras ao microfone

antes de chamá-lo até o palco improvisado. Sentindo a região da cintura ferroar,

Getúlio levantou-se com dificuldade. Ele procurou gemer baixinho na esperança de

que ninguém notasse a sua dor, e pareceu ter funcionado. Ergueu uma das mãos para

agradecer os aplausos e quando ameaçou dar o primeiro passo, uma dor lancinante

atingiu seu estômago, o fazendo se manter no lugar, precisando se agarrar na cadeira

a sua frente para evitar uma queda. A moça que estava sentada ali pareceu perceber,

e Getúlio achou ter escutado ela perguntar se ele estava se sentindo bem. Ele disse

que sim e foi até o palco lentamente, se apoiando em cada cadeira que passava,

tentando sorrir, mas só conseguindo exibir uma careta bizarra que faziam com que os

demais começassem a cochichar.

Getúlio chegou diante do senhor Ferreira suando frio, lhe apertou a mão e utilizou a

mesma para pegar o microfone. Ficou encarando o próprio rosto naquele quadro, admirado, depois virou-se para a plateia (a sua plateia), e tentou adivinhar o que

estariam pensando sobre ele. Talvez estivessem lhe invejando, e aquilo não seria

ruim, pelo contrário, seria perfeitamente natural.

Afinal, Getúlio era um funcionário modelo, um profissional exemplar, uma figura

muito distante do Getúlio Homem, aquele ser fodido com uma vida particular

devastada que, a qualquer momento, irá encontrar a filha esquelética morta em seu

quarto, afogada no próprio vômito e que em alguns meses terá ele mesmo um câncer

no fígado que certamente o fará ter de deixar seu emprego. Engolindo seus próprios

demônios, Getúlio levou o microfone até diante da boca.

— Eu poderia cair morto agora, que estaria realizado — começou ele, e aquela frase

não teria sido mais apropriada para aquele momento.

Cotidiano Sombrio
Enviado por Cotidiano Sombrio em 16/11/2022
Código do texto: T7651257
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.