O AMANHÃ É APENAS UM TALVEZ
O chá até que não estava ruim naquela tarde nublada e fria, assim como a vista da
copa das árvores, que estava encoberta por uma camada considerável de nuvens
baixas que provavelmente traziam chuva.
Gregório Menezes estava sentado na área de lazer na companhia de Leopoldo Júnior
e Madame Serafina, os únicos naquele lugar que possuíam sensatez. Não que os
demais idosos fossem completos estúpidos, nada disso, é que Gregório e seus
camaradas simplesmente entendiam um pouquinho mais sobre a vida para ter a
coragem de admitir que ali seria a última morada de cada um. A esperança que boa
parte dos outros adorava nutrir, não existia entre aqueles três. Enganar a si mesmo
com falsas ilusões jamais fora bem-vindo naquele trio. Eles provavelmente eram os
únicos idosos da Casa de Repouso Viva Bem que não recebiam qualquer tipo de
visita. Bem, algum tempo atrás Madame Serafina foi procurada por um homem
jovem e de boa conversa, que passou bons quarenta minutos sozinho com ela ali
mesmo naquele lugar, mas assim que o sujeito partiu, Gregório ficou sabendo que ele
era apenas um advogado. Fora enviado pela neta da Madame, uma garota que
Gregório jamais vira mas que não gostava nenhum pouco. A menina deveria ser a
única herdeira da família e não via a hora da avó bater as botas, e aquilo era mais
natural do que se podia imaginar. Aquele tipo de verdade costumava ser acobertada
pelos demais hospedes do refúgio, que adoravam contar mentiras pelos corredores,
mentiras tão poderosas que eles mesmos acreditavam nelas. Naturalmente, Gregório
e seus amigos rebeldes acabaram deixados de lado, distantes do mundinho
fantasioso de cada um daqueles velhos sonhadores, e tudo bem para eles, que tinham
como única preocupação se o chá da tarde seria servido quente. Leopoldo Júnior, por
exemplo, estava achando que o sujeito que vivia no quarto ao lado do seu não iria
muito longe, e seu comentário arrancou gargalhadas de Gregório e Serafina, que
quase derrubaram suas xícaras de chá.
— Adoro como você mata uma pessoa por dia nesse lugar, — comentou Gregório, se
ajeitando na cadeira. — Diria que é seu passatempo predileto.
— Um deles, — sugeriu Serafina. — O outro é cuidar as enfermeiras.
— Acho que é só o que consigo fazer hoje em dia. Olhar ainda é possível. O que mais
se pode fazer em um lugar como este?
Ninguém precisou responder aquela pergunta, já que na verdade ela não fora feita
para ser de fato respondida. Era o tipo de comentário que representava o refúgiocomo um todo, o abismo em geral em que estavam enfiados. Ali, os dias cheiravam a
monotonia e comprimidos para dor.
Gregório tinha uma boa analogia sobre o fato, algo que ele havia lido em algum livro
quando ainda não precisava forçar sua visão, uma frase que dizia que a velhice era
uma ilha cercada de morte.
A frase pesava nos ombros quando era ouvida, porém, os três meio que ignoravam a
dor e mudavam de assunto, mas nunca subvertiam o real significado da coisa. Quem
adorava agir daquela maneira eram os outros, mas eles, os três idosos mais antigos
do refúgio, não embarcavam naquela fantasia.
Morrer era uma questão de tempo e aquela lição eles aprenderam logo que cruzaram
a fronteira dos oitenta, e sim, foi duro ter que admitir que o próximo minuto poderia
ser o último. Logo no início daquele tipo de compreensão, Gregório iniciou a sua
rotina diária de sentar-se diante da montanha coberta de árvores, segurando sua
xícara de chá para olhar absolutamente para nada. Compreendeu que aquilo era
justamente o que ele vinha fazendo nos últimos anos, principalmente durante o
período em que gerenciava uma pequena empresa de suco natural. Ele sentava atrás
de uma mesa e apenas esperava. Fazia ligações o dia inteiro, anotava números,
enchia sua cabeça de problemas e nunca parecia satisfeito. Era como uma longa
espera por alguma coisa que teimava em não aparecer. Então, quando os anos
cruzaram rapidamente e ele se deu conta de que estava velho demais para continuar
esperando, decidiu que era a hora de fazer as malas e seguir sua rotina em outro
lugar.
Meses depois Leopoldo juntou-se a ele, e por último Serafina, que durante sua
juventude não fizera muito além de ser a quarta esposa de um comandante da
marinha. Ela não gostava de falar muito sobre seu passado, o que para Gregório não
tinha problema, já que gostava muito da presença dela e de como lidava com a morte
de um modo muito semelhante ao seu.
Durante todos aqueles dias em que estiveram juntos, Gregório chegou a cogitar a
possibilidade de que ao decorrer de toda sua vida, estivera esperando por pessoas
como aquelas. Talvez aquilo fosse o seu propósito desde o início, embora a teoria
tenha perdido forças com o passar dos anos. Não dava para saber muito da vida e
parecia que aquela era a graça do jogo, afinal. Quando se é apenas uma criança, você
não compreende praticamente nada que o cerca, e quando envelhece, passa a sentir
falta daquela inocência e fingir que tudo está muito bem. Era um processo natural
que Gregório adorava odiar, assim como basicamente tudo naquele refúgio. Nem ele
nem seus dois grandes amigos sabiam o que viria depois daquele chá, porém estavam
sempre preparados para o pior.
Seria muito ruim sentar-se ali amanhã e não ter a companhia de algum deles, mas
era assim que a banda tocava fosse ali dentro ou lá fora, atrás daqueles muros. A
diferença (Gregório achava), era que do lado de fora a vida era corrida demais ao
ponto de você nem perceber o fim se aproximando. Isso também fazia parte do
trajeto até ali, e quando se percebia aquilo já havia se passado muito tempo e logo
você estava sentado com outros como você bebendo chá.
Madame Serafina deu seu último gole erguendo a xícara e demorou um pouco até se
levantar.
Seu joelho esquerdo vinha estalando muito ultimamente. Em seguida, Leopoldo a
acompanhou e ambos olharam para Gregório.
— Hoje foi bom. — Disse Leopoldo.
— Foi. — Concordou Serafina.
— Preciso concordar com vocês. Aliás, acho que estamos concordando com muitas
coisas ultimamente.
Os três sorriram e em poucos minutos Gregório já estava a sós novamente,
encarando as árvores. Não houve uma despedida e nem um até um amanhã. Eles não
tinham aquele hábito, pois, viver o presente sem esperar nada do amanhã era muito
mais aceitável.
Ficava menos cruel quando se sabia exatamente como encarar o futuro.