Segurança Particular
- Segurança particular?
Julia se assustou quando viu o homem de quase um metro e noventa, parecendo um armário postado na frente dela. O pai sentado no sofá da sala, o charuto entre os dedos, o olhar de desdém.
- Para que isso pai? – Julia virou-se de costas para o homem de pele negra e cabelos ralos, as mãos eram tão grandes que deixaram a adolescente de quatorze anos impressionada.
Então o pai se levantou. O charuto que antes estava entre os dedos, agora estava no canto da boca. O passo lento amaciado pelo carpete felpudo da sala e pela sandália de solado macio.
- Bom dia! – Disse o pai passando pela filha e estendendo a mão para o homem, que sem graça estendeu a dele e os dois se deram as mãos em um cumprimento tímido de ambas as partes. – Queira entrar, por favor.
Julia parecia congelada. A presença daquele homem enorme lhe assustava.
- Papai eu...- Ela não conseguiu concluir.
- Julia. Por favor. Vá para o seu quarto e só saia quando eu mandar. – Ordenou o pai.
Os lábios da adolescente estremeceram na eminência de um choro, mas ela se conteve; não queria ser vista por um estranho aos prantos e correndo pela casa totalmente perdida. Lentamente Julia subiu às escadas, os passos duros, compassados, a cara amarrada. O segurança arregalou os olhos e fez uma careta quando ouviu a porta bater no andar superior da casa.
- Queira me desculpar. - Disse o pai. – Essa idade é fogo.
- Eu sei disso. Também tive uma filha, mas isso não importa agora. – Falou o segurança.
- Bem. O senhor está na minha casa e ainda não nos apresentamos, meu nome é Jacques.
O homem deu um sorrisinho de canto de boca.
- Meu nome é Francisco, mas todo mundo me chama de...
- Não importa como o senhor é conhecido pelas outras pessoas. Aqui o senhor vai ser o Francisco, segurança particular da minha filha.
Jacques levou Francisco para conhecer a enorme casa onde morava. Mostrou a sala com três sofás gigantes, quadros pendurados nas paredes, sendo um deles de mais de um metro de altura. Em seguida conheceu os aposentos onde dormiria. Era um lugar simples com uma cama, uma mesinha pequena, uma cadeira de ferro bem conservada, e um espelho pendurado na parede; no canto perto da pequena janela havia uma caneca com escova e pasta de dente, sem contar um pequeno armário ainda vazio, mas que em poucos dias estaria cheio com as roupas e pertences de Francisco.
O segurança recebeu três ternos completos, incluindo os sapatos, tudo preto, igual a cor da pele do novo empregado.
- Gostou do terno, Francisco. – Questionou Jacques.
- Muito! São bem bonitos! – Respondeu Francisco contrariado com a cor da roupa que para ele poderia ser de um tom mais claro, um azul, por exemplo.
Francisco despediu-se do novo patrão prometendo retornar no dia seguinte bem cedo como pedido por Jacques. Francisco viu o portão fechar automaticamente detrás de si.
O segurança saiu andando pela rua, ao virar a esquina esbravejou:
- Racista, filha da puta! – Francisco não gostou nem um pouco das cores da vestimenta, mas teria de aceitar mesmo assim, pois precisava e muito do emprego, e chance dada não pode ser desperdiçada.
Julia mexia no celular quando o pai bateu na porta para em seguida entrar no quarto da menina. Não tinha nada de cor de rosa ali. As paredes estavam cheias de pôsteres, os armários eram envelopados na cor cinza; na parede havia uma televisão grande e de bordas finas.
- Oi. – Disse o pai antes de fechar a porta.
Julia não deu ouvidos. Jacques foi mais incisivo.
- Julia, larga esse celular, precisamos conversar. – Julia jogou o celular em cima da cama. O pai se sentou ao seu lado e começou a falar. Explicou sobre a necessidade de a filha ter um segurança particular, explicou também dos perigos da cidade, dos assaltos, das possibilidades de sequestro.
- Mas pai, e os meus amigos? – Questionou ela em um lamento choroso.
- Você vai poder continuar visitando seus amigos, mas o Francisco, o seu segurança irá acompanhá-la a partir de amanhã.
- Não é justo. – Disse a menina cruzando os braços e fazendo biquinho igual a criança mimada.
Jacques fechou a cara, enfiou a mão em um dos bolsos da calça e disse:
- Tudo bem. Mando aquele homem para o olho da rua antes mesmo de ele começar, no entanto, eu corto também a sua mesada.
- Não! – Gritou ela em agudo de doer os ouvidos.
- Julia pare já com isso! Você não é mais nenhuma criança, precisa crescer.
A menina levantou-se da cama. Um quarto sem bonecas, sem brinquedos, um quarto triste e escuro de uma adolescente rebelde sem mãe e com um pai controlador.
- Eu não sou mais uma criança. – Ela disse entre lágrimas, soluços e suspiros descontrolados. – Eu sou uma...- Julia não conseguiu terminar antes de sentir a mão do pai em sua nádega.
No mesmo instante do tapa Jacques se arrependeu e recuou. Nem quando a filha era pequena ele tinha cometido tamanho desatino.
- Desculpa. – Disse ele. As mãos tremendo, os olhos marejados de arrependimento. A porta fechada, a filha encolhida num canto do quarto, ele de charuto e copo de whisky na mão na solidão imunda da sala.
No dia seguinte sentado à mesa posta para o café da manhã, Jacques viu a filha passar, pegar duas torradas secas e sem dizer palavra ir em direção a porta de saída da casa.
- Me perdoe por ontem. – Jacques disse.
Julia não respondeu. Do lado de fora, encostado em um dos carros da família estava Francisco, o segurança particular de Julia. Quando a menina viu aquele homem enorme pela segunda vez na vida ela tomou um susto e chegou até a recuar, mas seu pai estava lá para impedir qualquer tipo de fuga ou algo parecido.
- Bom dia, senhor Jacques! Bom dia, senhorita! – Disse Francisco abaixando levemente a cabeça em sinal de respeito.
Julia não gostou nem um pouco. De mochila nas costas e uniforme da escola ela entrou contrariada no banco de trás do carro, colocou o cinto de segurança e de cara de poucos amigos levantou o vidro do veículo sem sequer se despedir do pai; encabulado com a situação, Francisco deu a volta, abriu a porta do lado do motorista e entrou. Jacques os observava do lado de fora. As mãos negras presas ao volante, o cinto de segurança também colocado e ajustado, o rádio desligado, o retrovisor ajeitado, o motor ligado e o carro saindo lentamente, num passo fúnebre e melancólico.
- Meu nome é Francisco. – Disse o segurança se apresentando para a menina.
- E eu com isso?! – Respondeu a menina pouco se importando para o homem que estava ao volante de um dos carros do pai.
- Tudo bem, tudo bem. Meu dever é proteger a senhorita de qualquer contratempo, entendeu?
Julia não respondeu, apenas baixou a cabeça e ali permaneceu até a chegada a escola. Francisco estacionou, saiu primeiro, abriu a porta e com um gesto de cordialidade quis ajudar a menina a carregar seus pertences, a mochila, a bolsa com o lanche e uma outra bolsa que tinha sabe-se lá o que.
- Tira essas mãos imundas das minhas coisas, seu... – Prontamente Francisco recuou. A raiva foi contida naquele instante, mas despertou quando voltou para o carro e ao virar a esquina para retomar o caminho da casa do patrão, deu um soco no volante.
- Pirralha!
Francisco precisava se acalmar e manter o controle diante de criatura tão sem educação e mimada quanto aquela menina. Chegando a casa dos ricos estacionou o carro na garagem, saiu e se esticou, Jacques esperava por ele, o terno azul marinho e o fiel charuto enfiado entre os dedos.
- Correu tudo bem, Francisco? – Questionou Jacques.
Francisco rodeava o carro, mas parou um pouco só para responder.
- Sim senhor.
- Não aconteceu nada demais?
Francisco não queria contar da malcriação da menina, mas percebendo o jeito como o patrão o olhava não teve jeito.
- Ela disse coisas que eu não gostei, mas eu peço ao senhor que não a castigue. Sei que a filha não é minha e...
- Não vou castigá-la, pode ficar tranquilo. Agora liga esse carro e vamos até a minha empresa.
Diferente da filha o pai foi no banco da frente. No trajeto os dois conversaram bastante, em alguns momentos riram. Francisco parou o carro na frente de um prédio de seis andares de fachada espelhada, um senhor de cabelos grisalhos se aproximou e de sorriso no rosto abriu a porta do carro, Jacques saiu do carro, olhou em volta e apertou a mão do funcionário.
- Seu Carlos. Um ótimo dia para você. – Falou Jacques. – Pare o carro logo ali na frente, na vaga de cor azul, feche a porta e venha até aqui. – Concluiu Jacques.
Francisco parou o carro onde o patrão mandara, lentamente foi caminhando, e enquanto andava admirava a imponência daquele lugar. O chão era revestido por pedras que mais pareciam pequenas lajotas coloridas, vasos de plantas estavam espalhados por toda a parte.
- Pronto doutor Jacques. – Disse Francisco esticando o pescoço para ver o prédio de seis andares.
- Vamos entrando. – Disse Jacques.
Uma enorme porta de vidro escuro abriu-se diante deles. Jacques entrou primeiro sendo seguido de perto pelo motorista. Uma moça bem-vestida num terninho preto e com um lenço amarrado no pescoço se aproximou e cordialmente com um gesto com a cabeça cumprimentou Francisco.
- Bom dia. – Disse a moça para Francisco, que sem graça apenas sorriu.
- Bom dia, Doutor Jacques. – Disse a moça também ao patrão.
- Essa é a Suelen. Ela é uma das nossas recepcionistas. Vamos fazer um tour pela empresa. Todos os dias você vai me trazer e me buscar aqui, além, é claro, levar a Julia para a escola e para onde ela quiser ir com alguma amiga dela.
- Sim senhor. – Disse Francisco.
Passaram por duas portas enormes, pegaram um elevador e subiram alguns andares, não era o último, mas era muito alto.
- Aqui é onde eu controlo tudo. – Disse Jacques olhando a vista pela enorme parede de vidro blindado que dava direto para a parte de trás do prédio.
Atrás da enorme construção havia uma fábrica. Gente, indo e vindo. Carrinhos lotados de caixas sendo dirigidos por homens de uniforme cinza escuro, de capacete e colete de sinalização.
- Desculpe perguntar. O que se fabrica aí?
- Meias, lenços, gravatas, roupas de criança até cinco anos, enfim, um monte de coisa. – Respondeu Jacques.
- É enorme. – Disse Francisco enquanto admirava a grandiosidade de tudo.
- Sim, é bastante grande. Começou com o meu avô, passou para o meu pai e agora sou eu quem toma conta; a Julia será a quarta geração.
- Ela gosta de vir aqui?
- Não muito. Ela prefere mais os amigos, o quarto dela.
- Entendo. Ela está numa idade complicada. Sei como é.
Jacques e Francisco deixaram a sala e continuaram a caminhar pelos corredores, entraram em um elevador, a porta fechou e a conversa prosseguiu.
- O senhor tem filhos, Francisco?
- Tive uma filha, mas faleceu faz alguns anos.
- Sinto muito. Deve ser uma dor terrível.
- Sim. É uma dor inexplicável. Qualquer perda, por mais que a gente esteja preparado, é dolorosa.
O elevador desceu alguns andares. Jacques e Francisco desceram dois lances de escada até chegarem de frente a uma enorme porta de ferro. Jacques deu algumas batidas leves até um clique ser ouvido e a porta se abrir lentamente.
Quando a porta se abriu, um homem de meio metro de altura, cabelos grisalhos, vestido num uniforme, e de dentes tortos na boca.
- Ismael, bom dia! – Disse Jacques para mais um funcionário.
- Bom dia. Eu não esperava ver o senhor por aqui hoje. – Disse Ismael
- Eu vim trazer o Francisco para conhecer a fábrica. Ele é motorista e segurança particular da Júlia.
Os três passearam por toda a fábrica. Ismael foi mostrando e explicando a função de cada máquina e o que cada funcionário fazia ali dentro; Jacques apenas observava a distância os dois.
- Legal. – Disse Francisco após mais uma explicação dada por Ismael.
Relógio no pulso, ponteiros se movimentando, era mais de uma hora da tarde. Francisco de passo apressado de aproximou do patrão e disse:
- Doutor Jacques eu preciso ir buscar sua filha na escola.
Jacques consultou viu as horas no celular.
- Claro. Leve-a para casa, nada de desviar o caminho. Caso ela reclame diga que foram ordens minhas.
- Sim senhor. – Disse Francisco se retirando e acenando para Ismael que não retribuiu o aceno.
O caminho até a escola onde Julia estudava não era tão longe. Francisco virou o volante para o carro dobrar a esquina, passou um farol, parou em outro e esperou abrir para prosseguir, enquanto esperava batia com os dedos no volante, no som do rádio um samba, seu ritmo musical favorito. Estacionou o veículo, saiu dele e ficou próximo a ele, quase de frente para o portão do colégio.
Julia saiu rodeado de meninos e meninas da mesma idade dela; abraçou uma garota de cabelos curtos e olhos verdes e deu um beijo na bochecha de um garoto loirinho, bem branco, parecia um fantasma de tão clara a pele dele. Francisco ajeitou o paletó. Quando o viu, Julia o olhou dos pés a cabeça, abriu a porta de trás do carro, entrou, jogou a mochila do outro lado do banco, afivelou o cinto e fechou a cara. Francisco também entrou, também afivelou o cinto e antes de ligar o carro disse:
- Tenha uma boa tarde, senhorita. Nós iremos para a casa.
Julia não respondeu e Francisco não se importou. O rádio desligado. Ela não gostava do rádio, apenas o ruído sem sentido das batidas dos fones de ouvido que de tão alto eram percebidos pelo motorista.
- Qual a matéria que você mais gosta de estudar? – Perguntou Francisco na tentativa de tirar alguma palavra da boca de Julia.
- Por que você quer saber? Você não passa de um preto sujo. - Quando ouviu o insulto o sangue subiu, a ponto de ele virar o volante com tudo fazendo a menina bater com a cabeça no vidro após uma freada brusca. – Olha o que você fez! – Gritou Julia.
- Se eu fosse o seu pai te daria uns tapas agora. – Com os dedos tremendo, Francisco tirou o celular do bolso, discou um número e esperou o outro lado atender. Quando finalmente a ligação foi atendida, ele colocou o telefone em viva voz.
- Doutor Jacques?
- Oi Francisco, algum problema?
- Sim senhor. Vim buscar sua filha na escola e...
- Aconteceu alguma coisa com ela?
- Pai! – Disse Julia com voz chorosa. – Eu bati a cabeça.
- Isso é verdade, Francisco?
- Sim senhor. É verdade sim.
- Quero saber o que aconteceu. Se não estiverem em casa vão direto para lá, imediatamente.
Francisco obedeceu a ordem. Julia chorava baixinho. O segurança particular olhou Julia pelo retrovisor.
- Peço desculpas. – Ele disse.
Julia não se importou, fingiu que não ouvia. De cara feia permaneceu parte do trajeto em silêncio, nem mesmo a respiração podia ser notada.
- Eu tinha uma filha com a sua idade. – Disse o segurança particular.
Os olhos de Julia se arregalaram quando ele disse isso.
- E onde ela está? – Perguntou Julia.
Olhando pelo retrovisor, Francisco respondeu.
- Ela faleceu fez dois anos ontem.
- Sinto muito. – Conseguiu dizer. – Julia se ajeitou no banco de trás do carro.
- Eu não fui um bom pai. – Disse Francisco.
- O meu não é um bom pai.
- Sim. Ele te dá tudo do bom e do melhor.
- Mas não me dá amor.
- Talvez lhe falte tempo. A vida dele é muito corrida. E tem mais. Se ele não te amasse do jeito que você imagina, ele não teria me contratado para ser motorista e segurança particular da senhorita.
- Meu pai só o contratou para não me deixar fazer o que eu quero.
- O mundo é perigoso, Julia. Está cheio de perigos por aí.
- Eu sei me proteger sozinha.
- Minha filha dizia a mesma coisa. Eu sempre falava para ela tomar cuidado, mas infelizmente foi em vão.
- Ela foi assassinada?
- Não. Ela começou a se envolver com pessoas erradas. Ficou viciada em drogas e bebida. Para ela aqueles amigos eram mais importantes que eu.
- Sua esposa não fazia nada?
- Sou viúvo. Eu fui um pai ausente, trabalhava dia e noite para dar o melhor para minha filha. E hoje não tenho ela mais.
- Tente entender um pouco o lado do seu pai. Sei o quanto é difícil para você, mas faça um esforço.
- Sim, vou tentar. E me perdoa por ter dito aquelas palavras para você.
- Eu que te peço perdão pela freada e por ter machucado você.
- A ferida em você foi direta no coração, talvez nunca cicatrize. A minha foi só uma pancada. Com gelo e um antibiótico melhora.
O carro dobrou a esquina. Lentamente um portão grande pintado de branco com detalhes em dourado foi-se abrindo, era onde Julia morava.
Jacques os esperava, os braços cruzados sobre o peito, o charuto enfiado no canto direito da boca, quase caindo. Julia foi a primeira a sair do carro. Dava para notar de longe a vermelhidão no rosto dela, Francisco desceu em seguida.
- Quero que me expliquem o que houve. – Disse Jacques.
- Foi tudo culpa minha, pai. Eu o desrespeitei. – Julia falou.
O segurança particular e a menina ficaram um ao lado do outro, quase de mãos dadas. Jacques não conseguia mudar a fisionomia carrancuda.
- Doutor Jacques, eu. – Tentou dizer, Francisco antes de ser interrompido pelo patrão.
- Um momento. Eu dou a você a responsabilidade de proteger a minha filha e você faz isso com ela? Veja o tamanho desse hematoma. – Completou ele enquanto mostrava ao empregado o rosto da filha.
Francisco baixou a cabeça, cruzou os dedos na altura da barriga e num sussurro respondeu.
- Eu sinto muito senhor, não vai mais se repetir.
- Não vai mesmo. O senhor está despedido. Pegue suas coisas e vá embora daqui.
Julia assistia incrédula tudo aquilo, sem saber o que fazer; enquanto o segurança particular, desolado caminhava triste rumo ao quarto oferecido pelo patrão. Dentro do pequeno cômodo tirou calças e camisas que lhe pertenciam, deixou o terno preto que usava no trabalho dobrado em cima da cama de colchão duro, tão ruim que machucava suas costas. Pegou também a pasta e a escova de dentes que trouxera de casa, fechou a porta e saiu. Francisco leva o pouco que havia trazido dentro de uma sacola verde de mercado.
Julia saiu correndo na direção de Francisco. O motorista ficou paralisado, visivelmente envergonhado.
- Eu vou conversar com o meu pai e...
- Não precisa. Só peço que você o obedeça e continue estudando.
Francisco viu o enorme portão em detalhes dourados deslizar e foi embora sem dar adeus e sem olhar para trás.
Julia entrou com tudo dentro de casa. O pai estava sentado na sala, a televisão ligada mostrando as notícias do dia.
- Por que o senhor fez aquilo? Não viu que ele pediu desculpas. – Gritou Julia.
Jacques não se moveu um centímetro de onde estava, assim mesmo respondeu à sua maneira.
- Minha filha. Esse homem mal trabalhou aqui. E se eu me lembro muito bem, você o odiava, principalmente pela cor da pele dele. E tem mais. Você despreza o homem o tempo todo, e na primeira conversa que tem com o sujeito já acha ele o cara mais sensacional desse universo? Pelo amor de deus, Julia! Cresça um pouco.
Julia baixou a cabeça, como se tivesse aceitado o sermão feito pelo pai.
- Ele falou da vida dele, da filha que morreu por causa das drogas, das dificuldades e...
- O mundo está cheio de histórias tristes. – Disse Jacques.
- O senhor não tem uma história triste para contar. Você nunca falou sobre a minha mãe.
- Cale essa boca e vá para o seu quarto Julia! – Ordenou o pai, que já não estava mais sentado e sim em pé com o famoso charuto preso entre os dedos.
- Você nunca me amou! – Disse Julia entre soluços.
- Eu sempre te protegi. – Ele disse.
- Mentira! Contratou um segurança para me proteger, e na verdade a função de um pai é proteger a sua própria filha.
- Não diga sandices, Julia. Eu te dou tudo do bom e do melhor. Você estuda no melhor colégio dessa cidade, veste roupas boas, come o que quiser.
- Mas o senhor nunca me amou de verdade. – Julia caminhou até o quarto enquanto Jacques voltava a sentar no sofá. O charuto seria deixado de lado, ainda aceso. Em seu quarto, Julia afundaria a cabeça no travesseiro e choraria até pegar no sono.
Mais de um ano se passou desde a terrível discussão entre pai e filha. Julia estava perto de completar dezesseis anos e usava o cabelo com mechas mais escuras. A fábrica de Jacques só crescia e novos contratos com novos fornecedores eram assinados.
Julia caminhava pela rua de braços dados com duas amigas, todas sorridentes, falando alto, falando dos meninos que elas tinham beijado na última festinha e dos planos para os próximos dias. Elas passaram diante de pessoas que dormiam na calçada, as três apertaram o passo quando um dos homens, visivelmente embriagado tentou se aproximar delas. Uma das garotas gritou alto e o homem foi se afastando, foi como se o aquele grito agudo e estridente de doer os ouvidos tivesse sido o suficiente para espantar aquele pobre homem.
As três viraram a esquina.
- É melhor a gente ir embora para casa. – Disse uma delas, enquanto ajeitava a franja alaranjada.
- A estação de metrô é logo ali na frente. – Disse Julia apontando para um lugar com uma placa enorme que piscava um letreiro de letras apagadas.
Julia ficou congelada quando viu um homem de grande estatura, barba por fazer, cabelos sujos, deitado em cima de um pedaço sujo de papelão, com os pés descalços e rachados.
- É o Francisco! – A voz dela tremia, lágrimas corriam pelo rosto. E ela sem ao menos explicar as amigas de quem se tratava, correu e foi abraçar aquele homem.
Sem reação o homem contribuiu o abraço sem ao menos perceber quem o estava abraçando, e quando percebeu quem realmente era, pôs-se a chorar copiosamente.
- Menina. – Ele disse.
Sem se importar Julia beijou as mãos sujas de Francisco. As amigas nada entendiam, mas permaneceram ali, paradas, apenas assistindo aquela cena.
- Tamires, Laura, esse é Francisco, o meu segurança particular.
Francisco apenas acenou com a cabeça para as meninas, que sorriram de volta sorrisos amarelos.
Julia levou Francisco a uma lanchonete e lá ele comeu e bebeu. Fazia três dias que o homem não mastigava nada. Julia se despediu das amigas antes de se enfiar em um carro de aplicativo com Francisco.
- Por que não está na sua casa? – Julia quis saber.
- Depois que seu pai me demitiu minha vida só piorou. Não por culpa dele, mas eu errei muito. Não consegui emprego em lugar nenhum e acabei indo parar na rua. Sem emprego sem dinheiro para pagar o aluguel.
- Vamos até a empresa do meu pai e vamos conversar com ele.
- Julia, não faça isso. – Pediu Francisco.
Não teve jeito, menos de meia hora lá estavam os dois em frente ao prédio de seis andares. Seu Carlos recepcionou Julia, mas quis impedir a entrada de Francisco.
- Ele vai entrar sim, ele está comigo. – Disse Julia. Seu Carlos sem saber o que fazer autorizou a entrada do homem.
Todos olhavam para os dois, Julia segurava a mão de Francisco com força, sem graça, Francisco de cabeça abaixava evitava a todo custo olhar para os lados.
A porta da sala do pai estava apenas encostada. Julia fez questão de se certificar que ninguém estava na sala com seu pai; girou a maçaneta e a porta foi-se abrindo, um rangido leve e ela e Francisco estavam dentro da sala de Jacques, que impressionado com o que acabara de ver, disparou:
- Mas o que significa isso? – Jacques estava sentado em sua poltrona de encosto alto. Na mesa porta retratos com fotos de Julia, alguns enfeites, atrás deles placas penduradas na parede, honrarias, diplomas, coisas valiosas para ele.
- Eu encontrei o Francisco na rua, pai. Você precisa ajudá-lo. – Disse Julia.
- Mas por que eu deveria? – Jacques perguntou.
Francisco decidiu falar.
- Perdoa senhor. Ela me encontrou por acaso, me alimentou e me trouxe aqui. Para mim o alimento já estava de bom tamanho, mas ela insistiu em me trazer aqui, para conversar com o senhor, e...
- Não precisa falar, Francisco, eu vou resolver com meu pai.
Jacques se levantou, andou pela sala e foi para perto da janela ficando de costas para a filha e para o ex segurança particular de Julia. As mãos enfiadas na calça do paletó, a cara de poucos amigos desenhada no rosto.
- Pois bem, mocinha. Você quer que eu o contrate de novo para ser seu segurança. É isso Julia?
- Sim. – Ela disse.
Francisco estava parado, uma mão segurando a outra que tremia descontroladamente.
- Você lembra da primeira vez que o Francisco pisou na nossa casa? Lembra do seu rostinho assustado, e do quanto você o desprezou todas as vezes que o pobre homem o levava à escola ou para algum outro lugar? E você quer que eu o contrate para que faça a mesma coisa?
- Eu não vou fazer de novo. – Disse Julia com voz chorosa.
Jacques virou-se e foi se aproximando dos dois. Francisco foi recuando cada de vez que o ex patrão chegava mais perto dele. Jacques estendeu a mão, Francisco não quis estender a dele.
- Vamos, Francisco, aperte a minha mão. – Pediu Jacques.
E assim Francisco fez, deu um aperto de mão frouxa, um aperto de mão medroso.
- Pode voltar a trabalhar como segurança particular da minha filha. Dessa vez vou pagar um salário maior para você, pois na outra oportunidade você fazia duas funções e ganhava apenas para ser segurança e não motorista.
Sem saber o que fazer e como reagir, Francisco abraçou Julia. Enquanto a menina e o segurança particular se abraçavam, Jacques escrevia algo em um pedaço de papel.
- Veja se está bom assim? – Disse Jacques esticando o braço e entregando o pedaço de papel na mão de Francisco.
Francisco pegou o papel, se aproximou dos olhos e com certa dificuldade conseguiu ler os números.
- Isso aqui está certo, doutor? – Ele perguntou.
- Está sim. A partir de hoje você vai ganhar isso aí. E como pedido de desculpas vou te comprar uma casa; aquele quarto nos fundos da minha casa é muito pequeno para um homem do seu tamanho.
- Eu não sei como agradecer. – Falou Francisco entre lagrimas e sorrisos.
- Agradeça protegendo a minha filha. Quanto a você minha filha. – Disse Jacques olhando diretamente para Julia. - Prometo ser um pai mais presente, embora meu tempo seja curto, mas eu arrumo um espaço, nem que eu não venha trabalhar um ou dois dias na semana.
- Promete? – Perguntou a menina.
- Prometo. – Ele respondeu. – Que tal jantarmos todos juntos essa noite? – Propôs Jacques.
- Acho uma boa ideia. – Disse a menina. – Você janta conosco Francisco. – Completou a menina.
Alguns meses se passaram. Julia tinha completado dezesseis anos e tinha arrumado um namorado. Jacques tinha diminuído a carga de trabalho para ter mais tempo com a filha, nesse tempo os dois viajaram juntos, foram ao cinema, teatro, e começaram a usar com bastante frequência a piscina de casa. Era comum também a visita das amigas de Julia e o passeios aos finais de semana de Julia com o namorado da mesma idade; o que Jacques não permitia era o rapaz dormir no mesmo quarto da filha.
Francisco estava firme no emprego. De casa nova e toda mobiliada, voltou a estudar e tinha planos de fazer um curso técnico ou quem sabe uma faculdade. FIM...