C tem Bruchov?!
Acordou ouvindo a pergunta estranha, ainda atordoado pelo enorme volume de álcool ingerido no dia anterior. Um casal ria fazendo graça com a onomatopeia.
Em sua mente, nublada, etílica, surgiram recordações de um passado ainda vivo. Grunhiu, revirando-se incomodado com aquela interrupção em seu repouso sob a marquise. Sentou-se, tateando a procura do inseparável gorro, suas mãos tremiam, em sua língua um gosto horrível precisava ser aplacado com um gole de cachaça. A mão direita guiou-se automaticamente na direção do recipiente em forma de barril, abriu-o e tomou um gole sôfrego, aguardou alguns segundos e o esvaziou. Aproveitou o recipiente para aliviar sua bexiga, ainda era cedo, o banco só teria movimento dentro de algumas horas. Já havia alguns aposentados formando uma pequena fila a partir da entrada do banco.
Suas mãos pararam de tremer, girou o corpo ainda sentado e ficou de frente para a rua, suas pernas, ainda fracas mal lhe obedeciam. Balançou a cabeça vigorosamente para tentar transmitir força à suas pernas. Esticou-se até que seus pés tocaram a calçada, ao ficar em pé sentiu uma ligeira náusea, tonteou e encostou-se a marquise. Era um conjunto humano que não chamava a atenção, seus pés calçados com uma virgula antiga e descolorida, calças marrons cheias de bolsos, uma camiseta vermelha com o conhecido retrato de Ernesto Guevara, um gorro que já foi branco. Sua pele não tinha uma definição de cor, idade indefinida, pelos cinza amarelados, olhos castanhos avermelhados davam vida a um rosto comum em um corpo magro, alto e com um abdômen pronunciado, denunciando um fígado comprometido.
Ensaiou alguns passos trôpegos, cambaleantes, seguiu em direção a um caminho já conhecido e habitual, deixou seus parcos pertences sob a marquise, nada havia ali que interessasse a alguém!
Parou em frente ao bar de costume, àquela hora com fregueses tomando o café da manhã antes de seguirem para o trabalho. Enfiou as mãos nos bolsos a procura de um trocado ganho com a venda de recicláveis, encontrou umas moedas e entrou no bar. O balconista já o conhecia, esperou que lhe desse os trocados e em um copo descartável colocou uma dose de aguardente, abriu a estufa de salgados, de lá tirou uma coxinha em um guardanapo. A mão, um tanto trêmula, segurou o copo e o salgado.
Saiu do bar, andou alguns metros. Havia um ponto de ônibus em frente ao bar, uma enorme fila aguardava o coletivo que os levaria para longe dali. Afastou-se do bar e do ponto, sentou-se nos degraus, sob uma porta de aço fechada. Mordeu a coxinha, mastigando devagar, não possuía muitos dentes. Tomou um gole da aguardente, pequeno (geralmente engolia tudo de uma vez, o liquido derramado direto na garganta), saboreou a bebida e o salgado.
Deixou-se ficar ali sentado, observando o movimento de carros e transeuntes, seus olhos percorrendo de um lado a outro, a rua. Neste movimento de cabeça ele a viu, observou-a por um momento , estranhando-a ali sentada na escada em frente à sua casa àquela hora. Ainda era cedo, costumava vê-la sempre no horário em que as pessoas almoçavam no bar. Num impulso levantou-se e caminhou na direção em que estava a menina sentada, cabeça baixa teclando em um celular, devia ter uns dez anos, se muito. Seus cabelos escorriam escondendo seu rosto concentrado no celular, não percebendo nada a sua volta.
Assustou-se ao ver os Nikes roídos, rasgados, seus olhos ergueram-se percorrendo os bolsos na calça marrom, a figura do Tchê, até deterem-se nos olhos vermelhos. A boca de poucos dentes abriu-se em um sorriso, indagando: “Setembro Chove?”.
Ela levantou-se como se impulsionada por uma mola, correu para o quintal coletivo, gritando histericamente. As pessoas que estavam na fila, aguardando o ônibus olharam curiosas na direção da casa em frente. Ele ficou ali, parado boquiaberto, não entendendo aquela reação. Afinal a pergunta era tão comum na sua infância, todos riam e respondiam: “pode ser que sim, pode ser que não!”.
De repente do quintal surgiram homens e mulheres, velhos e crianças, todos o olhando, furiosos e insultando-o. Tentou balbuciar algumas palavras mas foi contido, recebeu um chute no peito, desferido do alto da escada, caiu e foi chutado mais uma vez. Tentou levantar-se, mas uma paulada em sua cabeça derrubou-o novamente, um chute nos rins deixou-o sem ar. Fechou os olhos, ficou inerte sendo chutado e ferido a pauladas. Repentinamente o silencio, já não estava mais ali, era uma criança correndo em um descampado, puxando uma linha vendo a pipa subir alto, mais alto, mais alto...muito alto!
Uma viatura para, próxima a um córrego fétido. O policial ao lado do motorista desce, dentro do córrego há um corpo, os olhos abertos refletem o sol, a boca de poucos dentes deixa escorrer um filete de sangue que mancha a gola da camiseta vermelha.