CAMINHADA MATINAL

A antiga ponte servia como divisa entre o vilarejo Belo Monte e a cidadezinha de

Pedra Negra, mas não era uma estrutura enorme, com vigas monstruosas se

entrelaçando na direção do céu.

A ponte era apenas uma extensão da própria estrada, uma coisa que só existia porque

havia um riacho que cruzava logo abaixo, com águas não muito limpas descendo na

direção do Rio Verde. Era por essa ponte que todos os moradores de Belo Monte

(cerca de mil ou quase isso), tinham de passar sempre que havia a necessidade de

fazer qualquer coisa do outro lado da divisa. Quem possuía diariamente essa

necessidade era Lucas Castro, uma das poucas crianças que residiam no chamado

“lado errado” da região. Lucas precisava escutar todo tipo de piada a respeito do

lugar onde vivia, quase sempre sem devolver uma única resposta sequer, apenas

utilizando seu olhar reprovador como forma de protesto… o que geralmente não

surtia efeito algum.

Os outros garotos eram muito maiores e sabiam exatamente como amedrontar um

pirralho como Lucas, e cá entre nós, o menino não era o ser mais difícil desse mundo

de se pregar uma peça para vê-lo acuado e quase aos prantos em algum canto

afastado.

Este mesmo Lucas estava agora iniciando sua longa caminhada até a escola, com o

sol ainda fraco, apenas uma mancha alaranjada no horizonte acima da copa de

algumas árvores. Parecia que seria um dia quente para aquela época do ano e o

menino sabia muito bem daquilo, de modo que achou necessário apertar o passo

para estar no mínimo do outro lado da ponte antes que o sol desse as caras para

valer. Alguns minutos mais tarde, Lucas já conseguia enxergar a ponte, cercada pela

vegetação em seus beirais, trepadeiras escalando pelas escoras de sustentação e a

sempre tranquilidade que aquela parte em específico parecia transmitir.

Quando se aproximou um pouco mais, sua bexiga pareceu inflar e sua caminhada

diminuiu drasticamente.

Lucas precisava desesperadamente mijar.

Ele olhou rapidamente para os dois lados da ponte e desceu com cuidado por uma

das beiradas. Não seria uma queda fatal caso escorregasse, mas não pretendia chegar

na escola com a roupa suja ou (pior ainda), rasgada.

Ele utilizou uma das mãos para se equilibrar enquanto descia, tateando um dos

pilares e sentindo a suavidade das plantas. Sua bexiga remexia terrivelmente em sua

barriga, para um lado e para o outro, a sensação de que ela explodiria aumentando a

cada passo.

Passou por sua cabeça que, se de fato deixasse aquilo acontecer, teria de ir até à

escola com um círculo úmido em sua bermuda caqui, algo que os outros meninos não

iriam deixar passar despercebido, seria o fim, uma humilhação que Lucas começava

a temer de fato.

Quando enfim sentiu que seus pés encontraram terra firme, Lucas teve tempo de

avançar apenas dois passos antes de abrir o zíper de sua bermuda e começar a sentir

alívio. Suspirando, olhou à sua volta e percebeu que quase havia entrado no riacho. O

bico de seus tênis estavam sendo tocados pela água, e sua urina descia pela fraca

correnteza.

Aliviado, fechou o zíper e se preparava para subir de volta quando só então enxergou

o cadáver não muito longe de onde estava.

Após saltar para trás e quase cair no riacho, Lucas tentou gritar. Não conseguiu. Seu

pavor o deixou zonzo, e as coisas ao seu redor giravam devagar, como se flutuassem

diante de seus olhos.

Jamais sentira um medo como aquele antes. Nem mesmo quando Rafael Perez, o

menino mais velho de sua classe, o ameaçou com os punhos fechados e berrou que

iria quebrar o seu nariz assim que a aula acabasse, Lucas sentiu tamanho pavor.

Aquele tipo de pânico só era possível nos pesadelos, e bastava abrir os olhos para que

ele se evaporasse no ar como a fumaça do cigarro que seu pai costumava fumar.

Desesperado, Lucas fechou os olhos e nutriu a esperança de que sim, aquilo era a

merda de um sonho ruim e que assim que tornasse a abri-los, estaria em sua cama,

acordando pela primeira vez.

Ainda com o coração dando coices, Lucas abriu os olhos. Viu o cadáver ali perto

(muito perto), deitado sobre as pedras, o rosto virado na sua direção. Ele estava

vestindo uma camisa de botões escurecida, calças jeans azuis e sapatos sujos de lama.

Não parecia estar ferido… ao menos não que se podia notar.

Lucas achava que ele deveria ter a idade do pai, ou quase isso, não queria estar

pensando em coisas como aquela. Já bastava estar ali, encarando um homem morto

que, horrivelmente, parecia retribuir o olhar.

— Isso é uma merda! — choramingou.

A primeira vez que vira um cadáver foi em um filme chamado A Noite Dos

Mortos-Vivos, e aquela coisa podre conseguia andar e atacar as pessoas. Lucas sabia

que aquilo não era um defunto de verdade, que se tratava de um filme, porém, como

havia ficado impressionado no momento!

A carne podre, os olhos brancos, o resmungar raivoso… nossa! E agora ali estava

Lucas Castro, aliviado após conseguir mijar, mas, assustado demais até mesmo para

conseguir gritar, petrificado debaixo de uma ponte diante de um cadáver real.

Se aquela coisa se levantasse e começasse a avançar na sua direção, Lucas

provavelmente se encolheria e começaria a chorar.

Aquela era a primeira e única defesa de um covarde. Só que cadáveres não andavam

(ao menos não fora dos filmes), e Lucas queria simplesmente dar o fora daquele

lugar, começar a correr, desesperado e se possível, gritar por socorro.

Antes de começar a sua tentativa de fuga, lhe ocorreu que talvez aquele corpo

pudesse ser de algum conhecido. Não havia muitos moradores por aquelas bandas, se

é que o defunto era um morador local.

O riacho era apenas um pequeno braço de um rio muito maior, e às vezes ele trazia

outras coisas de outros lugares, como da vez que um barril repleto de gasolina veio

deslizando pela água até encalhar ali próximo, em um conjunto de pedras. Dias

depois a notícia de que aquele barril viera de outra cidade havia se espalhado,

gerando uma pequena onda de protestos pelo meio ambiente.

Contudo, Lucas não estava disposto a descobrir se aquele cadáver era um rosto

conhecido ou não. Talvez se fosse um garoto corajoso, sem receio de ter o calcanhar

agarrado por aquela mão gelada e morta, ele andaria até o defunto e olharia bem

para o rosto dele a fim de descobrir se o reconheceria ou não. Porém, Lucas era

apenas um garoto qualquer de nove anos, apavorado, prestes a sair correndo não em

busca de ajuda, mas sim de um lugar seguro onde pudesse apenas… respirar.

Subiu o barranco utilizando as mãos como apoio, cravando os dedos no chão,

sentindo as unhas serem invadidas pela terra.

A vontade de urinar pareceu retornar de repente e Lucas venderia a própria alma se

precisasse apenas para não descer até o riacho outra vez.

Assim que chegou até a estrada, começou a correr, apenas correr, sem gritar, o rosto

suado, a boca aberta em um ângulo torto. Correu na direção da escola sem olhar para

trás, afinal, não queria ter nenhuma surpresa desagradável.

Logo que a turma inteira preencheu a sala de aula, Lucas permaneceu mais quieto do

que o normal. Ele apenas escutava os gritos, as risadas, às vezes enxergava algum

dedo apontado para si.

Reparou que suas mãos estavam sujas (manchas de terra e filetes esverdeados de

grama), e as escondeu debaixo da classe.

Um longo momento depois, a turma ficou calada e só então Lucas ergueu a cabeça

para olhar para o senhor Dorneles, o seu professor. Para sua surpresa, quem ele viu

foi a diretora Patrícia, com um semblante abalado. Ela segurava as mãos diante da

cintura e pediu um pouco de atenção.

— As aulas estão suspensas pelo resto da semana, — anunciou, e antes que os gritos

de alegria começassem, ela ergueu uma das mãos e prosseguiu. — Peço que saiam em silêncio, em ordem, sem confusão. Entraremos em contato com seus pais assim que

as aulas retornarem.

— É por causa do professor Dorneles, não é? — perguntou Rafael, com um risinho

debochado. As outras crianças olharam de Rafael para o rosto preocupado da

diretora.

— Vamos, crianças — pediu ela. — Estão dispensadas.

— Meu pai disse que o professor Dorneles foi até o Rio Verde para pescar, mas,

preferiu pular na água para morrer.

— Cale a boca! — gritou a diretora, fazendo com que todos (inclusive Rafael),

saltassem nas carteiras. — Está suspenso. Quero falar com seus pais também. Não

quero que diga mais nada assim que deixar essa sala. Entendeu?

Lucas viu Rafael Perez fazer que sim com a cabeça e em seguida lhe mostrar um

sorrisinho despreocupado, antes de ficar em pé e colocar a mochila nas costas.

Todas as crianças fizeram o mesmo em seguida, e Lucas demorou um pouco mais até

conseguir se levantar.

Assim que o fez, sentiu-se um pouco enjoado, com o estômago pesando mais do que

deveria. Agora estava tudo muito claro. Terrivelmente claro. Seu cadáver havia lhe

ensinado a somar e a subtrair ainda na semana passada.

Sentiu que uma mão o agarrou pelo braço e deu um pulo. Quando olhou para frente,

viu a diretora Patrícia o encarando de forma tristonha.

— Vamos, Lucas. Precisa ir para casa.

— Acho que tenho uma coisa para contar para a senhora.

— E o que seria?

Lucas Castro buscou e encontrou uma coragem que nunca imaginou possuir e enfim

começou a falar.

Cotidiano Sombrio
Enviado por Cotidiano Sombrio em 08/11/2022
Código do texto: T7645482
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