O mendigo filósofo
- Que merda! Meu pneu está furado! Amigo, ô meu amigo! Hei...
- O que é?
- Será que tu pode dá uma forcinha aqui?
- Não.
- Por que, não?
- Não está vendo que estou ocupado?
- Mas você é um mendigo.
- Sou, é? Defina “mendigo”.
- Como "defina mendigo", meu amigo. Só estou precisando de uma ajudinha para trocar o pneu aqui do carro.
- Em primeiro lugar, não fui, não sou, e nunca serei seu amigo. Em segundo, o que eu ganharia te ajudando?
- Bom, eu te descolo uma comidinha...
- Tu realmente acha que eu me vendo por uma “comidinha”?
- Então porque estás vivendo nas ruas?
- Vivo nas ruas para ajudar as pessoas a sair delas.
- E pra isso você precisa passar fome, dormir no frio, usar roupas rasgadas e não ter uma higiene pessoal?
- Tu, por acaso, já ajudou alguém de verdade?
- Claro que já!
- Quem?
- Minha mãe. Ela estava doente há algum tempo, eu a ajudei.
- Que tipo de doença?
- Pneumonia.
- Isso não é doença!
- Como não?
- Tu por acaso é um pai de santo?
- Não...
- Então não ajudou ninguém. Quando me refiro a ajuda, me refiro a passar sentir na pele o que as pessoas pelas quais você quer ajudar sentem. Não posso ajudar gente das ruas se eu não morar nas ruas. Precisamos nos tornar acessível e ao mesmo tempo inacessível.
- Como assim?
- Me tornei acessível às ruas, e inacessível para todo meu âmbito social. Abandonei tudo por um mundo melhor.
- Tu só podes ser um louco!
- Isso é o que as pessoas insanas acham das sensatas.
- Tu se considera sensato?
- Mais do que tu.
- Já chega, vou pedir ajuda para outra pessoa, com licença!
- A ajuda que tu precisas é social.
- Sou muito bem sociável.
- Se és sociável porque não perguntou meu nome?
- O que uma coisa tem haver com a outra?
- Se tu perguntasse o meu nome eu te ajudaria.
- Tudo bem, qual é o seu nome?
- Eu não lembro.
- Como alguém pode esquecer do próprio nome!
- Isso não é nada, tem pessoas que esquecem que sou gente.
- Para min tu és gente.
- Passei a ser porque eu era o único na rua capaz de te ajudar com o pneu furado.
- Ta, chega.
- Um dia a vida vai dizer a mesma coisa para ti.
- O quê? Do que está falando?
- Um dia tu morrerás.
- Sim, natural, todos nós.
- Mas há pessoas, que como tu, vive a vida inteira morta, e quando estão prestes a morrer de verdade, querem aprender a viver. Viva o quanto é tempo.
- Para um mendigo tu saca muito bem de metáforas.
- Não me considero um mendigo. Isso é um rotulo hipócrita.
- Hipócrita?
- Sim, hipócrita.
- Não sei onde estava com a cabeça quando fui pedir ajuda para ti.
- Quer um conselho?
- Que conselho?
- Pegue uma pneumonia.
- O quê?
- Assim tu vai entender do que estou falando.
- Eu não vou pegar nenhuma pneumonia!
- Então tu nunca saberás como poderia ter ajudado sua mãe.
- Olha, será que tu podes parar de dar conselhos filosóficos e me ajudar com o carro?
- Não.
- Tudo bem, eu faço sozinho.
- Gostei de ver, atitude individualista.
- Tu podes me deixar em paz?
- Não.
- E porque, não?
- Porque o seu carro não está com o pneu furado.
- Como não está?
- Você é mesmo um tolo, ajudo pessoas que, de fato, precisam ser ajudadas. Seu carro é o detrás.