ASAS PARA... A LIBERDADE !

VÔO PARA... A LIBERDADE !

O marido tomava café, lá pelas 9 horas, nem era tão cedo, o jornal dobrado numa das mãos e a xícara fumegante na outra. Aproxima-se a esposa, séria, a rigidez nas faces, no lugar do semi-sorriso tão comum ao seu modo de ser. Sentou de frente para êle, a mesona quase como trincheira, cotovelos sobre o tampo. Geralmente, sentava na "quina", perpendicular ao marido, em "L invertido", os joelhos se tocando. Pelo visto o problema era sério:

-- "Precisamos conversar... uma longa conversa" !

(Huumm, a coisa é grave mesmo, será que êle esquecera alguma data importante, não fizera a feira... pensou, preocupado.)

-- "Rogério, de minha parte nosso caso termina aqui" !

Se um bombeiro entrasse pela janela do 8º andar e caísse dentro da cozinha êle ficaria menos surpreso. Mesmo assim, com fio de voz, tentou gracejar:

-- "Querida, temos no mínimo um "CASOmento", são 15 anos de vida conjugal. Fiz algo errado" ?!

-- "Bem se vê que você não me leva a sério, Rô... não, você não fez nada ! O fato é que eu cansei... cansei de ser nada, de não ter sonhos, nenhum objetivo. Ser mãe é muito pouco, embora seja uma maravilha quase sempre. Não me sinto nada realizada, não construí coisa alguma, meu Passado é uma folha em branco" !

-- "Mas eu nunca te impedi de coisa alguma" !, "ecoou" Rogério, sarcástico.

-- "O Sistema nos põe de lado, Rogério, o Mundo não evoluiu tanto assim... pode-se votar, trabalhar fora, até se separar, mas a mulher continua sendo interrompida, ganhando menos que os homens e nossos sonhos são os primeiros a serem colocados de lado pelos "machos Alfa", os "heteroTops". Continuamos sendo menosprezadas e desvalorizadas, isso já lá se vão 40 mil anos" ! (*1)

-- "Eu não vivi tanto, "Joana d'Arc"... não posso pagar pelos erros alheios" !

-- "Ah, claro que não... que sonhos meus você já realizou" ?!

-- "Como assim ?! Sempre dei tudo o que você pediu" !

-- "Coisas da casa, dos filhos... me deu presentes a fim de que eu continuasse sendo uma boa esposinha submissa e comportada, "no meu cantinho", uma espécie de "Micheque" que usa Religião como muleta. Quero a minha LIBERDADE, a qualquer custo" !

-- "Vais jogar fora metade de sua vida... é isso" ?!

-- "Vou começar A VIVER... é preciso coragem para realizar nossos sonhos. Muitas vezes a gente acha que não é capaz, que não é o momento ou não está preparada. Fica buscando desculpas externas para não se colocar à prova... pois eu vou correr todo os riscos. Se não der certo, valeu a pena porque não me acovardei; pelo menos, tentei !" (*2)

O jornal pendia de sua mão inerte... Rogério devolveu a xícara ao pires. Olhou fundo as íris em fogo da esposa que êle jamais imaginara sentir-se PRESA na vida doméstica da qual ela parecia gostar tanto. O café tornou-se amargo, Virgínia lhe tomara -- com 3 ou 4 frases -- Passado e, talvez, Futuro ! Nem imaginava o que faria dali por diante.

Teve a sensação de ver diante de si uma borboleta largando o casulo onde ficara confinada. Quase lhe viu asas ! Lembrou do antigo filme "Papillon", no qual um detento foge das diversas prisões francesas e, por fim, de uma ilhota isolada no meio do oceano... foram quase vinte anos de tentativas, até conseguir a liberdade. Virgínia repetia ali e naquela hora o salto "para o Nada" do ator Dustin Hoffman. Rogério concluiu com um sorriso de ironia que o PRESO agora era êle... "amarrado" às lembranças da bela vida com Virgínia.

"NATO" AZEVEDO (em 24/out. 2022, 20hs)

OBS: (*1) - conto baseado nas declarações da atriz CLÁUDIA ABREU, no caderno "TDB" (pag. 6) do jornal Diário do Pará de 24/10/2022.