Gig
O erro principal daquele infeliz foi aborda-la tentando falar sobre rock.
Ele era um tiozão de churrasco que saía de moto, dizia que gostava de rock.
Tinha uma família falida em qualquer aspecto possível, idealizada anos antes por ele mesmo, e agora não tinha a quem recorrer, nem mesmo para lamentar a própria burrice.
Então saía para comprar cigarro e ia beber, voltando horas depois sem levar para casa os pães que a esposa havia pedido, causando assim mais uma crise familiar, daquelas que cortam a euforia alcoólica e antecipam a sensação de ressaca.
O sujeito saía de moto usando bandana, porque era careca e insistia em deixar as laterais da cabeça com fios longos e a bandana cobrindo o topo, irremediavelmente calvo.
Recebeu o que merecia, tão logo deu motivos.
Ela era Mila Cox, que com cabelo Chanel azul e camiseta dos Buzzcocks, tomava um drink misterioso em sua caneca personalizada, que levava onde quer que fosse, antes de um show inusitadamente marcado num ponto do Largo da Batata, muito mais conhecido pela música popularesca, gêneros contemporâneos sexistas e machistas, muito apreciados por milhões de pessoas induzidas ao erro desde o nascimento, e um público que correspondia à proposta da casa.
Quem marcou o show ali foi Ado, baterista da banda Hollow Clowns, que naquela noite tocaria depois da banda de Mila Cox, Crop Circles. O camarim era um banheiro desativado, mas que estava razoavelmente limpo e seco.
Todos já haviam chegado.
Os Crop Circles eram um duo, formado por Mila Cox no baixo e sintetizadores, e Zími, com um kit minimalista de bateria, tocado por ele de pé.
Para eles o Hollow Clowns era uma boa banda, ainda que imitassem um pouco o Husker Dü.
Para Ado, Crop Circles era uma mistura de Violeta de Outono com X-Ray Spex.
Haviam combinado que Os Crop Circles tocariam antes. Mila e Zími queriam terminar logo o show para assistir ao Breu já devidamente relaxados e podendo beber antes de ir embora.
Tudo isso aconteceu conforme o programado, e com a facilidade de acontecer na capital.
Mas a cena com o tiozão do churrasco aconteceu antes, quando nem havia anoitecido.
Mila Cox e Zími haviam chegado ao bar no fim da tarde, deixaram equipamentos no camarim improvisado. Zími saiu para fumar um baseado e Cox ficou para tomar uma bebida antes de tocar.
A banda Hollow Clowns também já estava lá para ver o show de abertura e fazer seu show em seguida.
Mila Cox estava no balcão e o velho tarado da moto estava sentado numa mesa na calçada. Entrou para pegar mais cerveja e puxou assunto, perguntando sobre o tipo de som que seria executado.
Antes de responder a essa pergunta, ela perguntou ao tiozinho qual eram as suas referências de rock, e foi então que o sujeito engasgou pela primeira vez.
Ao mencionar Rolling Stones e Janis Joplin sem conhecer nada a respeito, e ao travar a ponto de não se lembrar nem mesmo do nome de alguma banda de Classic Rock de FM, começou a ser massacrado.
Ela preferiu começar dizendo que detestava Janis Joplin e que “Mercedez Benz’ era uma das cinco músicas mais chatas já gravadas.
Explicou que ele certamente estranharia o som das duas bandas naquela noite, pois não saberia identificar nem mesmo as referências ali apresentadas.
A essa altura, Zími entrou no bar e avistou a cena de um monólogo em forma de metralhadora de sua parceira musical para cima de um velho barrigudo motoqueiro e tarado, ele entendeu imediatamente do que se tratava.
Quando se aproximou, ela já estava terminando a parte musical do monólogo, explicando que era preciso guardar segredo sobre certas coisas que gostamos de ouvir secretamente.
Disse a ele que não costumava dizer que gostava da Pat Benatar, Duran Duran ou America. Ela só ouvia essas coisas escondida.
Atacou a indústria cultural, alegando furiosamente que ela produz idiotas aos milhões, que vão desde os artistas que são lançados até o público que os consome.
Então ela mudou de assunto para atacar a hipocrisia da família tradicional brasileira, e a expressão do tio do churrasco ficou ainda mais deprimida, como se um ponto nevrálgico tivesse sido atingido com precisão cirúrgica.
Naquele momento a expressão do sujeito era de perplexidade e de um amargo arrependimento por ter tentado uma investida.
Terminou enfatizando o desprezo que tinha por fascistas, racistas e machistas.
Quinze minutos depois, os Crop CIrcles iniciavam o show, que durou quarenta minutos.
A banda Hollow Clowns tocou por mais quarenta minutos, dando início à apresentação quinze minutos depois do encerramento do show de abertura.
Quando Zími e Mila Cox estavam assistindo o Hollow Clowns, se divertiam com as caras que o velho tarado fazia enquanto assistia embasbacado o segundo show.
O ápice da comédia se deu no intervalo entre um show e o outro, quando satiricamente colocaram o clipe de ‘High in high school’, do Madam X, no projetor que colocaram no fundo do pequeno palco, que era usado para as bandas apresentarem imagens aleatórias durante os shows.
O lugar era pequeno, e cerca de cinquenta pessoas se espremiam durante as apresentações.
Sara Cox, irmã de Mila, cuidava da venda de cd’s e camisetas. Venderam onze cd’s e quatro camisetas, o que era mais que suficiente para bancar o rolê.
Naquela noite, estavam felizes por não terem que pegar estrada com o Chevette Jeans de Cox para voltar para casa.
Cox morava na Penha e Zími, no centro, e tocavam pouco na capital. Shows no interior eram muito mais frequentes.
O velho tarado da moto ainda bebia na mesma mesa, miseravelmente desamparado.
As duas bandas se juntaram depois do show, passaram num mercado em Pinheiros e partiram para beber na casa de Mila Cox.
No caminho, dentro do Chevette, os três integrantes do Hollow Clowns riam e contavam sobre os momentos SPINAL TAP que tiveram desde a véspera para que chegassem a tempo do show.
O baterista Ado se comprometeu a agendar mais shows conjuntos com as duas bandas, propondo também a gravação de um split.