É HORA DE SOPRAR AS VELINHAS
Logo que abri os olhos, bocejei e me arrastei da cama, querendo muito permanecer nela,
talvez para sempre.
Sabe, a vida para você provavelmente é como é para a maioria das pessoas, o que não
significa que isso seja exatamente algo benéfico. Em sua maioria, as pessoas fingem não se
importar e continuam seguindo, indo e voltando, com os ombros cada vez mais pesados e
mantendo um sorriso dissimulado no rosto. Isso se chama sobreviver, e de modo algum a
prática disso é interessante. A máquina humana só está bem quando as engrenagens também
estão, e, meu caro, pode apostar a sua sanidade que boa parte dessa gente vem sofrendo com
defeitos. Isso certamente não importa para você. Cada um de nós que se foda e se vire com os
próprios problemas, e não vou (e nem posso), julgá-lo por pensar dessa maneira.
Ontem, por exemplo, observei uma cena muito interessante enquanto bebia minha lata de
Coca-Cola sentado no banco da praça. Não muito longe de onde estava, reparei que um
garoto com seus vinte e tantos anos passava instruções para um idoso que usava uma
bengala e parecia perdido. O jovem gesticulava enquanto o velho tentava acompanhar o
movimento de suas mãos, o que pareceu deixá-lo ainda mais confuso. Minutos depois, o
idoso agradeceu e seguiu com seus passos lentos, enquanto o jovem recuou um dos pés e
abaixou-se para juntar a carteira que estava escondendo. Ele sentou-se e notei que começou
a contar algumas notas. Parece algo minimamente estúpido ou terrivelmente abusivo,
dependendo do seu caráter, mas o fato é que, aquele idoso só foi perceber a merda que havia ocorrido quando já era muito tarde e o dinheiro que talvez fosse para algum medicamento
estava agora no bolso de um garoto mal intensionado.
Onde quis chegar com essa pequena observação? Absolutamente em lugar algum, já que no
momento em que estou escrevendo isso, você sequer está se importando com o mundo para
além de suas paredes. A cama que deixei para trás assim que levantei, é ocupada apenas por
mim há cerca de sete meses. Antes, Silvana a ocupava comigo. Nós fomos casados por onze
anos, optamos por não ter filhos (o que foi a decisão mais sábia de nossa parte), e nosso
casamento pode não ter sido perfeito, mas foi o melhor momento da minha vida. Acredito
que nessa época viver era mais suportável, não mais fácil, dizer isso seria estar mentindo
como todo mundo.
O negócio é que os casamentos acabam, seja por suas inúmeras discussões, alguma provável
traição ou (como no meu caso), pela morte de sua companheira.
Silvana não exatamente morreu, ela teve sua vida roubada, o que não é a mesma coisa. No
caso dela, seu ladrão foi alguém que ordenou que lhe passasse sua carteira, seu celular e
também o seu carro. Como forma de agradecimento, ele lhe presenteou com uma bala
disparada por uma pistola. Não apenas uma, mas com algumas. Quando fui informado
através de um telefonema, procurei chegar o mais rápido que pude até o cruzamento da
avenida, onde Silvana estava jogada no asfalto e coberta por papel laminado.
Tentei imaginar o que ela teria pensado enquanto morria, e o que consegui concluir foi que
tentar adivinhar aquilo iria me deixar maluco.
Talvez de fato tenha deixado.
Nos dois meses após o assassinato de Silvana, andei até o cruzamento onde uma bala havia
estourado a sua cabeça e algumas outras perfurado o seu peito, e fiquei apenas ali, parado,
encarando o asfalto. Às vezes alguém buzinava e a minha única reação era seguir imóvel,
pensando naquela atrocidade, tentando enxergar através dos olhos dela ou simplesmente
supondo a intensidade da dor que ela havia sentido.
Horas depois eu arrastava o meu corpo até em casa e tentava dormir, só que tudo que vinha
até mim, eram apenas pesadelos. O sono só chegava com a ajuda de alguma garrafa de vinho,
e foi aí que passei a ficar dependente do álcool nos dias que se seguiram. Avancei de uma
garrafa para duas, do vinho para a vodca, dos dois simultaneamente.
Em apenas um mês senti que minhas roupas ficaram folgadas. Minha barba cresceu e abaixo
dos meus olhos surgiram olheiras enormes e feias, como borrões de uma maquiagem mal
feita. Alguns poucos amigos me ligavam às vezes, perguntavam como eu estava (a pergunta
mais absurda que um enlutado poderia escutar), e sempre tentavam me fazer continuar… só
que não é dessa forma que a vida é. Você não consegue simplesmente seguir depois que um
pedaço seu é lhe tirado a força. Se nos dois meses seguintes você se sente melhor, consegue
se alimentar, dormir e trabalhar, ótimo, meus parabéns, mas não funciona assim comigo. Me
desculpe por minha fragilidade, e por achar que o mundo poderia ser de alguma forma um
pouco mais justo do que pensava que ele fosse. Silvana foi minha primeira namorada e antes
disso, minha melhor amiga durante a fase escolar.
Não consigo me lembrar de ter feito alguma coisa sem ela estar ao meu lado, sorrindo e
dizendo: vamos, ânimo, nós podemos!
Agora, me diga, como que você continua sem uma base como essa? A resposta não é
complicada, porém, ela tem peso e machuca: você não consegue. Provavelmente eu seja um
tremendo covarde, e se está pensando assim, bem, foda-se você e sua vida repleta de dor.
O que decidi fazer é, sim, avançar, mas não do modo tradicional.
Após me levantar e mijar mais fora do que dentro do vaso, sentei-me diante do computador e
enviei um e-mail para cada pessoa que conhecia e que ainda parecia se importar comigo.
De todas elas, apenas um também era amigo de Silvana, um sujeito magricela que
frequentava a mesma igreja que ela antes de nos casarmos. O nome dele era Pedro e havia
deixado (ou melhor, sido proibido), de colocar os pés na mesma igreja que o acolheu só por
ele revelar sua homossexualidade.
Além dele, outras cinco pessoas também receberão o mesmo e-mail no hoje, e tenho certeza
que ficarão em choque e também assustadas.
No texto peço-lhes desculpas, pois decidi seguir pelo caminho que considerei o mais justo.
Também digo que não espero que entendam, e que isso, apesar de parecer uma covardia, na
verdade, era o oposto.
O caixão que eles iriam encontrar com o meu corpo dentro estava na sala de estar, bem no
centro entre os sofás. Este caixão era apenas simbólico, e fora construído por mim, utilizando
apenas tábuas velhas, pregos e um pouco de tinta. Confesso que senti alguns arrepios
enquanto tirava as minhas próprias medidas.
Os comprimidos que irei ingerir estão bem ao meu lado, com um copo de vinho. Coloquei
exatas quatro velas em candelabros improvisados em cada ponta do caixão, e elas já estão
acesas. Após enviar os e-mails, irei beber o vinho com comprimidos flutuantes dentro do
copo e em seguida me acomodarei no caixão. Não sei dizer como será daí em diante, mas
acredito que tudo ficará bem, e é nisso em que estou acreditando.
Meu pedido final, enviado por e-mail para que viessem ao meu próprio velório, foi para que
soprassem todas as velas após uma oração; afinal, hoje também é meu aniversário, e acho
que já sei o que vou pedir.