PAUSA PARA O CAFÉ
Em apenas quinze minutos diários, ambos deixavam a sala gelada para trás, a
porta metálica dava uma única e seca batida. Os dois andavam lado a lado pelo
corredor pouco iluminado, falando às vezes, em outras digitando coisas através do
celular. Eles seguiam adiante não muito depressa, pois sabiam que na sala seguinte
não haveria muito além da cafeteira, um pacote de biscoitos salgados e alguns
minutinhos de conversa fiada. Às vezes, Muriel levava um recipiente e retirava dele
uma sanduíche de presunto, partido ao meio, e dava uma das metades para Fabrício,
que não recusava e agradecia com um sorriso no rosto.
Muriel era um sujeito magro, quase careca, casado a sabe-se lá quanto tempo,
que falava pouco, mas o suficiente para ser compreendido, escutado com atenção
até mesmo pelo próprio chefe e ainda mais por Fabrício, que estava naquele
emprego fazia pouco mais de dois meses. Os dois já estavam na saleta há quase cinco
minutos, olhando hora para as paredes, hora para o celular, falando do dia difícil, do
calor que fazia do lado de fora, e de como, especificamente naquela tarde, Fabrício
não se sentia bem.
— Nunca havia pegado uma criança antes? — indagou Muriel, sabendo
exatamente qual seria a resposta.
Fabrício fez que não com a cabeça.
— Ainda nas aulas, torci para que não acontecesse.
— Seria melhor se tivesse acontecido.
— Se fosse o caso, teria abandonado o curso.
— E lhe poupado de hoje, — retrucou Muriel, servindo-se mais um copinho de
café.
Bebeu apenas um gole, olhou para o relógio em seu pulso, ficou em silêncio.
Do corredor ali fora, nada se ouvia. As outras pessoas transitavam aos montes nos
andares acima, olhando suas pranchetas, anotando aqui e ali, rabiscando receitas,
apoiando estranhos, consolando com mãos repousadas sobre ombros. Era um
mundo movimentado aquele, com pessoas indo e vindo, fazendo seus trabalhos, e
quase todos os dias, alguém descia até Muriel e Fabrício empurrando uma maca com
alguém coberto por um lençol branco. Assim como aconteceu naquele dia logo cedo,
mas com algo pequeno demais sobre a maca, com lençol sobrando nas beiradas, uma
forma quase imperceptível sob ela.
Fabrício cruzou uma perna sobre a outra, olhou diretamente para o colega que
ainda bebia seu café.
— Isso mexeu comigo, cara — falou, parecendo distante.
— Foi a profissão que escolheu. Sabia que em algum momento, uma criança
entraria pela nossa porta, deitada e consequentemente sendo analisada na mesa fria.
— Sei disso. Mas acho que… Nem sei o que acho.
Muriel terminou seu café, mirou na lixeira ao lado e arremessou certeiramente
o copinho vazio. Ficou de pé, conferiu o relógio (ainda restavam quatro minutos) e
começou a andar na direção do corredor. Quando se encontrou diante da porta,
virou-se para o colega.
— Você pensava que seria diferente. Que aguentaria! Que teria estômago.
Agora ouça, filho. Se não consegue lidar com o que viu agora pouco, pare
imediatamente. Nem volte para a sala fria.
Fabrício não disse nada. Refletiu por um instante (viu no fundo de sua mente a
pequena Carolina, abrindo os braços, sorrindo, gritando papai assim que o enxergava
entrando pela porta da casa todo fim de tarde) e em seguida sua mente escureceu,
gelou com se entrasse na sala fria, e Carolina desapareceu, sumiu, e tudo que havia
diante de seus olhos era um garotinho pálido, nu sobre uma mesa de metal, rígido,
dormindo para todo sempre. Sua visão foi gradualmente retornando para a saleta do
café, embaçada, e logo ele reparou em Muriel, ainda de pé e escorado no batente da
porta.
— Alguns acreditam que estão prontos para isso, — falava ele, e Fabrício se
perguntou há quanto tempo ele ficara ali falando para as paredes. — Mas só depois
que se incomodam com algo, é que descobrem que estavam errados.
— Você se incomoda?
O homem de jaleco e com os braços cruzados sorriu.
— De modo algum. Estou nessa há quase trinta anos. Não há o que não tenha
visto deitado naquela mesa. Homens, mulheres, velhos e crianças. Todos são
exatamente iguais quando são deixados aqui. Pensei que já havíamos conversado a
respeito.
O jovem de jaleco não se recordava de falar sobre isso. Em pouco mais de dois
meses, quase nada foi dito na saleta do café ou na sala gelada. Ambos preferiam o
silêncio, as palavras no celular, o ruído dos aparelhos afiados que abriam e depois
fechavam o peito dos cadáveres. Fabrício se pôs de pé, empurrou a cadeira para
baixo da mesa.
— Vamos indo. Acabaram os quinze minutos, — disse, e quando cruzou diante
de Muriel, sentiu a mão do mesmo cair sobre seu ombro.
— Não precisa voltar, se não quiser — aconselhou o experiente dissecador de
cadáveres. — Não seria o primeiro e certamente não será o último a desistir.
— Tudo bem. Está tudo bem.
E ambos seguiram de volta pelo corredor silencioso, um tanto frio, com cheiro
forte, mas não pior do que o odor medonho da sala gelada, o cheiro que mostra a
realidade do ser humano, que põe fim a tudo e inicia tantas outras. Caminharam
juntos até adentrarem no recinto frio, o ar gelado lhes tocando o rosto, o menino nu
com o peito aberto lhes recepcionando, Fabrício evitando olhar para ele, mas tendo
de fazer isso dois minutos depois, com um bisturi na mão.
O turno estendeu-se até às dezenove horas, e lá fora, com Muriel ajeitando
suas coisas no carro e Fabrício fazendo o mesmo no dele, despediram-se e antes de
ligarem seus motores, o homem calvo baixou o vidro do carro e perguntou:
— Você vem amanhã?
Fabrício olhou para o início da noite no céu e se pôs a pensar.