CÉU DE OUTUBRO
Por um momento, Luís observou o céu e notou que algo estava diferente. Contudo, não
ficou surpreso. Já esperava por algo assim.
Em abril do ano passado, a âncora do telejornal deu a notícia, com as mãos unidas sobre a
bancada, um olhar distante e uma voz impressionantemente calma.
Luís não lembrava com clareza do que ela disse (algo sobre aquecimento global, talvez), mas
tinha uma lembrança muito viva de onde estava e com quem estava.
O lugar era sua casa, na Avenida Jardim, e a pessoa que estava na cozinha era Denise,
preparando o jantar. Denise sempre esteve ali durante três anos, falando que o amava, que
seu sonho era construir uma família com ele, com um casal de filhos chamados Eduardo e
Eduarda. Naquela noite, Denise estava cozinhando frango e batatas, escutando uma voz
feminina que vinha do cômodo ao lado. Aquela voz pertencia à Monica Chaves, uma âncora
respeitada em todo país, que vestia sempre terninhos caros e falava com propriedade sobre
qualquer assunto.
Segundo Luís, a pauta daquele dia era sobre aquecimento global, e Denise revirou os olhos
dizendo que não a interessava. Ela era honesta consigo mesma, e não escondia de ninguém
que assuntos como o fim dos tempos lhe causavam medo e apreensão. Denise tinha vinte e
dois anos e achava abominável o fato de morrer muito jovem, sem ter o tempo necessário
para criar e educar Eduardo e Eduarda. Ela estava adicionando molho de tomate na panela
fervente quando Luís entrou na cozinha; ele abriu a geladeira e retirou uma garrafa de água
de lá.
— Você parece assustado. — Ela nota. — O que foi? O mundo vai explodir de uma só vez ou
bem devagar?
— As notícias não são nada boas, Denise. Vai acontecer alguma coisa. Vai mesmo.
Ele então dá as costas e sai, deixando Denise terminar o jantar, enquanto ela ainda pode,
enquanto ainda há um jantar a ser preparado.
Luís está na mesma casa que compartilhou com Denise por três anos, olhando através da
janela na direção do espaço.
Há alguma coisa ali, da para ver, mas ninguém ali fora parece dar a mínima. Algumas
crianças estão correndo, umas atrás das outras, sorrindo e gritando, e Luís acha que aquilo
não está certo. Elas deveriam continuar correndo, mas não sorrindo, apenas gritando e
fugindo.
Ele pensa em abrir a janela e gritar para elas, mas aquilo seria idiotice. As crianças iriam se
assustar, e em poucos instantes os pais delas viriam até a sua casa exigir explicações. Luís
teria então a oportunidade de dizer que... Dizer o quê? A verdade?
Não, isso não daria certo. Nunca deu. Os especialistas sempre tiveram esse papel e sempre
foram ignorados e tachados como estúpidos sensacionalistas.
Ele fecha a cortina com um puxão e liga a TV. Talvez haja alguma coisa por ali, um tipo de
explicação para o que ele reparou no céu.
Seu dedo aperta o botão sem parar, os canais saltam de um para o outro rapidamente. Ele
vê breves imagens em cada um deles, apenas borrões, nenhuma tarja no rodapé da tela
com a inscrição URGENTE escrita nela. Será que nem as emissoras de jornalismo estariam
cientes que estava acontecendo? Teriam eles ignorado o que a âncora falou no ano
passado?
Luís apaga a TV e passa a mão no queixo. Ele volta às pressas até a janela e afasta a cortina.
Seus olhos apontam diretamente para o céu. São quase oito da noite, mas ainda está claro.
Algumas estrelas salpicam o céu entre algumas nuvens alaranjadas, e em alguns lugares... se você olhar com atenção... irá conseguir enxergar, e Luís já está enxergando.
Os gritos eufóricos das crianças o trazem de volta e Luís olha para elas. Ainda continuam
felizes, e aquilo não está certo. De repente, um homem surge na varanda da casa em frente
e chama por uma delas. Um dos meninos se despede dos outros e diz que precisa entrar. O
homem na varanda parece agitado, e Luís tem certeza de que ele sabe de alguma coisa.
Provavelmente ele também estava na janela esse tempo todo, olhando para o céu, e quando
percebeu correu até a rua para chamar o filho e tentar salvá-lo. Luís abandona sua posição
na janela e vai o mais depressa que consegue sem tropeçar até a rua.
As outras crianças olham assustadas para ele, correndo pelo jardim, depois abrindo o
portão e gritando para o homem na varanda.
— Você também viu, não foi? — ele grita.
O homem pede para o filho entrar e caminha até Luís.
— Vi o quê?
— Me chamo Luís Lopes, sou seu vizinho de frente. — Ele estica a mão e ela fica no vácuo. —
Eu... Estava na janela desde cedo, e obviamente que assim que enxerguei fiquei apavorado,
mas pelo jeito não fui o único. Que bom que pediu para seu filho entrar. Os outros pais
deveriam fazer o mesmo.
— De que diabos está falando?
Luís passa uma das mãos no rosto. Ele está despenteado, com a barba por fazer, o retrato
perfeito de um lunático.
— Você assistiu ao telejornal noturno em abril do ano passado?
— Se assisti, como acha que posso me lembrar? Escute, amigo, preciso entrar e ficar com a
minha família. Volte para sua casa, tome um banho e tente dormir. Acho que está
precisando descansar.
O homem estava dando meia volta quando sentiu o pulso ser agarrado com força pelo
sujeito esquisito do lado de fora.
— Acha que estou louco?
— Acho que se não soltar o meu braço, vai arranjar um olho roxo. — Diz o homem, se
desvencilhando da mão de Luís.
Luís o acompanha se afastar e subir os degraus, e antes que ele abra e porta e entre, olha
ligeiramente para o céu. Ele parece se apressar depois disso, e sem que Luís perceba, o
homem desaparece e a porta se bate em seguida.
Luís se afasta da casa e recomeça a andar na direção da sua. No caminho, diz para as outras
crianças que já estava tarde e que deveriam correr. As crianças parecem ignorá-lo, e um
garotinho rechonchudo até começa a rir. Ele olha por cima do ombro e repara que seu
vizinho de frente está lhe espiando pela janela. Quando ele nota que Luís o enxergou, a
cortina se fecha imediatamente.
Há um vento fraco e abafado soprando ali fora, e aquilo não é apenas por culpa do calor
exagerado das últimas semanas, mas também parte da coisa toda. Luís tinha quase certeza
que a âncora alertou sobre aquilo também. Ela alertara sobre diversas possibilidades, e em
todas elas o final seria o mesmo, em nenhum cenário haveria alguma solução.
No início, Luís sentiu-se culpado pelo que fez, mas assim que os dias foram deixados para
trás e a culpa foi cedendo espaço para a compreensão, tudo pareceu ganhar um sentido,
finalmente.
Ninguém se importava com o rumo que suas vidas estavam tomando, e se o mundo
simplesmente decidisse parar de existir, que assim fosse, nada o impediria. Era como se os
avisos não surtissem efeito, como se cada pessoa tivesse ingerido alguma cápsula de
imbecilidade e deixasse de compreender o real significado da palavra PERIGO. Havia mais
de um ano que olhar para o céu não era nada raro, mas sim necessário para Luís, que fazia
isso sem se importar, apenas desligava a chave e se sentava na cadeira diante da janela. Ele
via estrelas, nuvens de tempestade, aviões, e uma vez até acha que enxergou um disco
voador — apesar de até hoje suspeitar que não era um.
Então naquele início de noite em outubro finalmente ele pareceu sentir-se aliviado.
Não era exatamente alívio, mas sim uma sensação de tranquilidade momentânea, assim
como se aventurar em uma montanha-russa; os calafrios pelo corpo cessam até a hora de
recomeçarem outra vez.
Ele sabe que assim que entrar em sua casa e fechar a porta, terá de voltar para a janela e
observar. Aquilo que enxergou no céu é apenas um indício, e ele quer com todas as suas
forças, que seja um indício dos bons. Acha que só assim (e apenas assim), toda sua
dedicação fará algum sentido.
Luís já está oito quilos mais magro desde que tudo começou em abril, e desde o mês
passado que ele não dá as caras no trabalho. Acredita que seu chefe não tenha notado sua
falta, mas não consegue afirmar com certeza, já que não possui mais um celular para
poderem lhe telefonar.
Às vezes, sente falta de Denise e de toda sua paixão. Da maneira que ela falava em terem
filhos, e de como já os batizara antes mesmo de existirem. Luís consegue assimilar muito
bem as coisas, o fim dos tempos com o fim de seu relacionamento. Ambos precisavam
acontecer em algum momento, e o relacionamento tomou a iniciativa. Foi difícil se desfazer
de todo aquele amor, enfiar uma faca no pescoço de quem se ama unicamente para
protegê-la de algo ainda mais doloroso como o fim do mundo, mas Luís não teve escolha.
Era mais digno e menos sofrido partir daquela maneira do que gradualmente, com o mundo
cada vez mais quente, com o caos e toda aquela confusão que seguiria. Luís não podia
deixar que as coisas chegassem naquele ponto, e sentiu-se privilegiado por agir a tempo.
Ele notou o desespero no rosto de seu vizinho de frente, na forma como chamou o filho, no
suor escorrendo por sua testa. Ele estava com pressa, precisava fazer qualquer coisa antes
que aquilo que surgiu no céu de outubro avançasse ainda mais. Luís entendeu a dor
daquele homem, e mais ainda o seu desespero. Quando ele afastou a cortina para lhe espiar
agora a pouco, provavelmente já o tenha feito.
Luís espera sinceramente que sim, pois sabe que cada pessoa precisa proteger o que é seu
de todo sofrimento maior. Ele detestaria que aquele homem batesse em sua porta no meio
da noite, chorando e lhe pedindo ajuda por ser um covarde. Seria assombroso ter de fazer
aquilo com outra família que não fosse a sua, mas Luís estava disposto.
Ele adentrou a noite observando o céu e, uma parte sua aguardou ansioso por uma batida
na porta.