Ciladas
Não havia mais sons. Nem sonhos. Era uma alma asséptica e apática. Clara e límpida. Alguém que oferecia, mais que a mão, a outra face.
Sem beijos, recebia abraços da solidão mais possessiva. Dessas tais que nos assolam, mesmo em meio às multidões ruidosas, arrebatando os pensamentos, que teimam em revisitar por-de-sóis, casas em ruínas, noites em claro e outros pretéritos imperfeitos.
Num espelho grande na sala, passearia etérea, vez por outra, refletida na fumaça de cigarros, tossindo entre o barulho do teclado a esmurrar textos intermináveis. Assopraria pensamentos de manhãs libertinas e festas vespertinas. As noites? Desnudas, cheias de promessas mudas e frases caladas. Ciladas.
No trânsito, insistia em deixar que certos pensamentos lhe trafegassem pela contramão, volta e meia avançando sinais vermelhos, sem mais apelos de buscas em dobro. Nessas horas, sorria uníssona com a possessiva solidão.
Num dia sem sol, entornara vinho tinto em vestes alvas e até os sapatos e os sonhos ficaram manchados das pegadas deixadas pela ausência de futuros. Nem mais o sol era capaz de aquecer lhe as ideias, então tentava esquentar o peito num amargo café, mas engolia-o sempre frio. Ou talvez gélido fosse seu próprio corpo.
A língua parecia anestesiada, sensibilizada pela aridez do tempo que não lhe restara para articular pedidos de desculpas, mesmo que não houvesse motivos para justificativas, quais fossem.
Pouca de sonhos como antes, mas sempre repleta de desejos e pedidos a estrelas cadentes, acendia outro cigarro pra dissipar bobagens na fumaça quente.