DISCURSO E ROUPA NOVA
Jonas Martins apalpou o peito e sentiu o papel dobrado no bolso interno do
paletó.
Claro que ele ainda estava ali. Jonas o havia enfiado no bolso ainda na
madrugada, após terminar de redigir algumas palavras. Passou a noite em claro,
sentado em seu escritório, uma xícara de café repousando na escrivaninha e apenas
uma caneta na mão. Para escrever uma coisa como aquela necessitava de coragem; e
principalmente de força.
Jonas não sabia muito bem de que forma começar. Quando escrevia suas
histórias para a revista Mundo Fantástico, procurava sempre iniciá-las com algo
empolgante, uma espécie de isca, algo que seus leitores adoravam assim que
colocavam os olhos naquelas palavras. Mas aquilo era diferente. Não buscava o
mesmo tipo de sentimento daquela vez. Durante o processo, rabiscou diversas
tentativas (todas utilizando o mesmo peso inicial), e em todas as vezes precisou parar
em determinado momento para secar os olhos. Era difícil enxergar até mesmo o
papel diante de si com todas aquelas lágrimas. Assim que fazia essa pausa, Jonas
aproveitava para ler o que acabara de escrever. Mudava uma frase aqui e outra
acolá. Rasurava alguma palavra. Substituía ela por outra possivelmente mais
adequada. Então transformava aquele papel em uma bola e o jogava no chão.
Exatamente como fazia ao criar suas histórias fantásticas, mas, ainda assim, com
muito menos paciência. O processo só se encerrou às cinco da manhã, após oito
xícaras de café e uma pilha considerável de papel.
Jonas não tinha certeza se havia ficado bom (esperava do fundo do coração
que sim), e logo que Marta despertasse iria pedir a sua opinião. Ela talvez não o escutasse com clareza, mas achava que seria uma boa ideia ler para ela mesmo
assim. Ela era a mãe, afinal, tinha o direito de ouvir aquelas palavras antes de todos
os outros.
Quando Marta desceu do quarto, a primeira coisa que viu foi o marido, em pé
diante da mesa do café.
Ele estava bem-vestido (o terno escuro sem dúvidas foi uma boa escolha), e
seu rosto cansado demonstrava o que havia sido a noite anterior.
Ela lhe dá bom dia, mas sabe que ele em nada será bom. Recebe um beijo na
testa como conforto e logo depois o marido lhe puxa a cadeira.
Marta deixa o corpo cair sobre ela e repara no olhar do marido. Ela sabe o que
ele está pensando; que ela ainda não está arrumada, que vai se atrasar, que será
uma vergonha chegar depois que todo mundo no enterro do próprio filho.
Marta ignora aquilo tudo. Ela está com o tempo em seu controle, —mesmo
que sua vida em si não esteja.
No quarto, pendurado no cabide, está o vestido preto. Ela o separou ainda na
madrugada, enquanto o marido estava trancado no escritório pensando no que iria
escrever para discursar antes ou após as palavras do padre. Os óculos escuros
estavam no criado-mudo, metodicamente guardados ao alcance. Tudo estava (na
medida do possível), bem e sobre controle. Não haveria atraso algum, não em um dia
tão terrivelmente importante. Ela bebe um pouco de café e observa o marido ainda
de pé, apoiado na pia.
— Conseguiu escrever?
— Consegui, — confirma Jonas, e espera que ela lhe peça para ler. O pedido
não acontece e Jonas se limita a dizer que espera ter ficado bom.
— Tenho certeza que ficou. — Diz a esposa, o olhar compreensivelmente
distante.
Fora ela quem fizera o pedido. Ela segurou a sua mão no dia, enquanto ambos
estavam no quarto, pensando em coisas que jamais imaginaram pensar. Jonas estava
com a cabeça apoiada nas mãos, provavelmente pensando em Gabriel. Ele escutou o
pedido da esposa e ergueu o olhar. Seus olhos estavam vermelhos e úmidos.
— Acha mesmo que serei capaz?
— Você é o único capaz, querido. Ninguém é melhor com as palavras do que
você.
Jonas não aceitou de imediato, e só depois que todas as lágrimas deixaram o
seu corpo, é que ele foi até a esposa e concordou. Marta o abraçou e disse que aquilo lhe traria conforto. Eles não jantaram aquela noite. Jonas não dormiu e
escreveu sem parar, enquanto Marta tentou dormir e tudo que conseguiu foi se virar
na cama a noite inteira.
Antes mesmo do velório, tudo que precisa ser feito é tão doloroso que Marta
chega a pensar que não terá forças.
O marido havia aceitado redigir o discurso, e ela iria usar de sua habilidade
como costureira para vestir o filho pela última vez. Antes, precisou dirigir até a
funerária.
Ela ficou vinte minutos no carro antes de conseguir descer e entrar naquele
lugar. Quem a recepcionou foi um homem idoso, que usava um terno com um lírio na
lapela e mantinha um bigode grisalho e bem aparado. Ele a conduziu pelo lugar e lhe
mostrou todos os modelos de caixões; brancos, escuros, envernizados, todos eles
brilhantes e revelando o rosto abatido de Marta. Ela não imaginava que sequer
poderia existir um caixão tão pequeno. Mas existia. Foi horrível vê-lo tão de perto.
— Acho que é isso que procura, — disse o homem de terno. — As dimensões
são para bebês de até dois anos. É menino ou menina, senhora?
— Menino. — Respondeu Marta, bem baixinho, a visão do filhinho deitado ali
dentro cada vez mais visível.
O homem de terno virou-se e apresentou o caixão ao lado. Era branco e
pequeno demais. Pequeno o suficiente para Marta sentir o coração esquentar como
se milhares de alfinetes quentes estivessem entrando nele. Era tenebroso olhar para
aquela caixa do tamanho de um travesseiro.
— Este é o nosso modelo masculino. Uma urna bem trabalhada, com seu
interior revestido por cetim na cor azul. O preço está bem acessível. Se preferir,
possuímos este mesmo modelo na cor bege.
Eram informações demais. Números demais. O filho havia se tornado apenas
um peso e uma medida. Foi difícil assinar os papéis, lembrar do caminho de volta até
a sua casa e até mesmo de dirigir. Você quer lírios cercando o corpinho inteiro ou
apenas dos lados?
Quer uma urna de outra cor ou a branca serve? Quantos aninhos ele tem?
Quanto ele estava pesando assim que seu coraçãozinho parou?
Marta sabia todas essas respostas e cada uma delas provocava uma dor
diferente. Ela também sabia que ainda havia muito a ser feito, e que o luto era agora
uma realidade constante, uma presença até mesmo física. Depois que chegou em
casa, precisou descer até a sala de projetos e estender o tecido sobre a mesa. Era um tecido vermelho, longo, que iria servir. Já havia costurado para muita gente, sabia
onde deveria cortar antes mesmo de usar a tesoura. Seria uma tarde angustiante, e
Marta tinha esperanças de que faria um bom trabalho. Ela até havia se convencido
do contrário algumas horas antes, mas o marido lhe confortou em seus braços e
disse para ela ser forte e continuar.
— Se existe alguém boa o suficiente com tecidos, este alguém é você. —
Completou ele.
O cortejo se estendeu até às duas da tarde. O caminho foi pela estrada de
paralelepípedo, com mausoléus em ambos os lados, em sua grande maioria feitos de
mármore.
Estava nublado. Ou talvez não estivesse. A vida simplesmente perdia sua
tonalidade quando estávamos deprimidos. Jonas liderou o cortejo durante a maior
parte do tempo, olhando firme para frente, os óculos escondendo o peso daquele
momento. Ele andava como um homem forte tinha de andar; a postura ereta, o
semblante calmo. Por dentro da pele, debaixo daquele terno caro, Jonas sentia-se
vazio. Era como se cada órgão seu tivesse sido retirado, ido embora com o filho. Ele
até se sentia mais leve, e suas calças precisaram inclusive de uma cinta. Pouco após
fazerem a curva, Marta aproximou-se e engatou o braço dela ao seu. Logo atrás,
alguns parentes andavam abraçados, todos vestidos de preto, cercando o carrinho
que trazia o caixão. Marta achava que haviam flores demais, coroas de flores belas e
caras, cobrindo praticamente tudo.
Ela estava agarrada ao braço do marido, e em determinado momento
perguntou se tudo estava bem — apesar de toda situação.
— Está. E você, está suportando?
Marta disse que estava, e era verdade. Suportar o luto era uma tarefa ingrata,
ela bem sabia, mas, as coisas tendem a piorar depois. O tempo não ajudava a curar
coisa alguma, ao contrário do que sua mãe e seu psicólogo tinham o hábito de dizer.
O peso da dor só aumentava, e as vigas de sustentação de seu corpo iriam ficar mais
frágeis a cada dia.
Eles se juntaram na capela e pacientemente escutaram as palavras do padre.
Este era um tanto jovem, os cabelos penteados para trás, brilhantes por causa do gel.
Ele tinha uma voz tranquila e tudo que falava não passava de um roteiro tradicional,
Jonas achava. Provavelmente ele já tenha utilizado aquele mesmo vocabulário no
velório anterior e talvez o reutilize no próximo. Contudo, Marta precisava daquilo. Ela
era católica, frequentava a igreja durante um domingo a cada mês e acreditava em Deus. Jonas também acreditava na existência de um... Mas de um modo diferente.
Assim que o padre encerrou sua oração com um sonoro amém, Jonas se levantou e
dirigiu-se até o pequeno altar. Agradeceu a presença de todos e disse que amava a
esposa, sua amiga mais confidente. Ele vê que Marta se emociona e retira um lenço
da bolsa.
— Gostaria de dizer algumas palavras para encerrar este momento, — ele fala,
retirando o papel do bolso do paletó. — Elas significam muito para mim. E
certamente para minha esposa também. Espero que elas representem o meu
menino. Que sirvam de guia para ele, onde quer que ele esteja.
As poucas mais de trinta pessoas escutaram as palavras ditas por Jonas. Ele era
um bom orador, um excelente escritor de histórias fantásticas, indicado duas vezes
ao prêmio de melhor romancista e ainda não tinha chegado aos quarenta. Enquanto
lia, às vezes seus olhos saltavam do papel para o caixão, ainda aberto. Ele via o filho
coberto por lírios e sua voz falhava. Lembrava-se dos exames de rotina, das noites
em claro, dos dedinhos do filho agarrando o seu polegar, quase sem forças, dois
caninhos enfiados em suas narinas. Da voz do médico lhes dizendo que ele só teria
oito meses de vida no máximo e da surpresa dele ao ver o pequeno Gabriel chegar ao
primeiro ano, muito frágil, mas ainda com vida.
Foi um excelente ano, aquele. Quando Jonas encerra seu discurso, ele observa
a esposa em prantos. Ele mesmo está chorando, mas não percebe. Todos
acompanham tudo até o final, após a última pá de terra cair sobre a cova. O casal
então recebe os últimos abraços, e aos poucos os veículos vão sendo ligados e
começam a deixar o lugar.
Por fim, Jonas gira a chave do automóvel e o motor ronca.
— Você gostou das palavras? — ele finalmente pergunta.
Marta não evita que uma lágrima teimosa escorra pela bochecha.
— Foram perfeitas. E a roupinha que fiz, estava linda?
— Estava perfeita.
O automóvel começa a andar, devagar. Pelo retrovisor Jonas enxerga o
cemitério ficando para trás. Foi um dia longo, cansativo e triste. Ainda assim,
sentiram-se aliviados, no final. Eles foram os pais perfeitos na imperfeição da vida.