CAPÍTULO V

Doces Lembranças

 

                                   

Em cinco de maio do ano de 1948, quando eu nasci, o país estava em paz e em pleno gozo das instituições democráticas. São Paulo crescia a olhos vistos, o que podia ser percebido pelos grandes arranha céus que cobriam o centro da cidade e se alongavam para além dos bairros periféricos do Pacaembú, Perdizes, Higienópolis, Consolação, Moema e outros, que já se integravam ao centro nervoso da cidade.

O sobrenome francês vem do meu pai, que era descendente de uma família que imigrara para o Brasil em fins do século dezenove e se tornara conhecida como fundadores da cidade paulista de Lorena, no Vale do Paraíba. Lorena, ou Lorraine (em francês) como se sabe, é uma das mais bonitas regiões da França. Faz divisa com a Alemanha e tem uma riquíssima história ligada à velhas tradições medievais que relembram os tempos das Cruzadas, as românticas aventuras cavaleirescas da época carolíngia e outras ligações com o espírito místico dos franceses. Talvez venha daí a influência que a música e a literatura exerciam sobre o espírito romântico do meu pai e ele que legou para mim.[1]

Ele era um seminarista diocesano, de rígida formação católica e gosto bastante apurado por música clássica. Tocava violino na Orquestra Sinfônica de São Paulo e participava regularmente de saraus, com uma clara preferência pelas valsas e chorinhos, que era um dos ritmos mais estimados pelos seresteiros e músicos da época.

Essa influência paterna – gosto pela música- já vinha do meu avô, que também era um exímio violinista e granjeara certa fama nos saraus paulistanos com sua refinada arte.

A par isso, a minha família era toda musical. Meu tio tocava oboé e a minha mãe tinha dons bastante desenvolvidos para cantar músicas italianas.

 

Meu pai era um poliglota que falava oito idiomas com bastante fluência. Como funcionário do antigo IAPI- Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, geralmente ele era deslocado para prestar serviço em várias cidades. Numa dessas oportunidades ele foi trabalhar em Taubaté, onde ficou por quatro anos. Depois voltou para São Paulo no início dos anos cinquenta.

A música já havia entrado na minha vida nessa época. Não bastassem os talentos do meu pai no manejo do violino, instrumento nobre por excelência, havia também a minha mãe, descendente de italianos, que incutiu na minha alma uma especial atração pela música italiana. Cantar as românticas canções da Velha Bota, na língua de Dante Alighieri, foi a primeira experiência que eu tive com a música. E todos se admiravam com a “Henriquinha” a menina que percorria as ruas do Bixiga de bicicleta, entoando “O Sole Mio” com a sua voz de criança, que não obstante a idade, já alcançava as notas mais altas que a canção exigia. Doces lembranças...

 A liberdade que meu pai me dava foi a coisa mais marcante que eu tive na minha infância. E essa sensibilidade foi uma coisa que me acompanhou durante toda a minha vida. Talvez ela também tenha sido a causa da maior frustração da minha existência até agor. Pois durante toda a minha vida adulta, especialmente depois de casada, foi o contraste entre a liberdade que meu pai me ensinou a amar, e a ausência dela, que marcou a minha vida de casada, a causa maior de todos os meus desgostos. [2]

Eu ainda vou falar disso com mais detalhes neste memorial, mas por ora, posso dizer a todos aqueles que venham a ler estes meus depoimentos uma coisa que me parece muito importante: nunca desistam dos seus sonhos. Nem por amor. Aliás, o amor que poda os seus sonhos não é amor: é servidão. Ninguém deve se submeter a isso. Todos nós nascemos para sermos felizes. E só seremos felizes se pudermos fazer as nossas próprias escolhas. E se pudermos compartilhar os resultados delas com as pessoas que nós amamos. E quando você renuncia à sua própria liberdade de escolher por conta de imposições alheias, não é só você que fica infeliz: você também faz os outros ficarem infelizes pois a infelicidade é como um vírus: ela se espalha com a velocidade de uma pandemia.

Infelizmente eu vim a aprender isso muito tarde. Mas antes tarde do que nunca.

Mas essa é uma outra história. Como bem salienta Laurentino Gomes em sua nova obra “Escravidão”,[3] ninguém é escravizado pela vontade de outras pessoas: elas se deixam escravizar por conta das suas necessidades de sobrevivência e por força de uma tradição cultural que formata pessoas e sociedades, fazendo com que, dentro delas, algumas dominem e outras sejam dominadas, sempre para servir a um propósito, nem sempre justo, mas explicável, que se chama ordem social. Entre estas últimas, encontraremos, em sua maior parte, as mulheres, que por conta de uma estrutura social tradicionalmente patriarcal, sempre foram relegadas a um papel secundário no mercado de trabalho e mantidas dentro de um círculo restrito de protagonismo econômico e ativismo social, que ainda hoje, malgrado todas as conquistas obtidas nos últimos tempos ainda opõem a ela um limite de ação pequeno e constrangedor.

Confesso ter abdicado da minha liberdade e dos meus sonhos por amor. E isso é o que ocorre com a grande maioria das mulheres, cujas aspirações são mitigadas pela condição que confere a elas a função da maternidade e da obrigação de criar os filhos, além do encargo de ser a gestora do lar. Isso eu disse em uma crônica que publiquei em uma antologia publicada pelo Lions Clube Itapety de Mogi das Cruzes. Reproduzo-a aqui porque ela reflete todo o meu sentimento a respeito desse assunto.

 

Ah! quantas e tantas... Essa sou eu; um nome? Pra que?! Basta um conto e escritos que nunca editei. Uma desordem sem eira.  Das beiras, só o passado. O presente tá dureza... E o epitáfio tá pronto, que é pra economizar. Poucos me conhecem verdadeiramente. Nem os de casa. Casa que não tenho mais. Foi invadida pela última amante do falecido. Aquele que com vinte anos casei e aos sessenta e um enviuvei. Bem, tá na hora de contar a história sem vírgulas que as uso muito no cotidiano, ops...usava. Procrastinar era meu nome e o sobrenome adiar. Os projetos se acumulavam numa desordem sem par, e as frustrações multiplicavam mágoas. Bobeira sem senso. O futuro é hoje! Acorda menina!  Menina onde áureos tempos permitiam tudo. Isso foi bom, pois observei malucos beleza, drogas e rock and roll e cá estou. Ilesa de cheiros, bebedeiras... Perseverar, superar, são palavras de ordem dos dias que amanhecem com chuva ou sol. Xô tristeza! E como nunca experimentei coma alcoólico me embriago sim, de música: CANTANDO, fugindo das encrencas onde uma vírgula era lei e o ferro e fogo me induziam a tantas agruras e desencantos. Compus até uma canção; SONHOS E DESENCANTOS. Quanta bobeira. Quero mais é ser feliz. E você que está tendo a paciência de me conhecer um pouco? `Tenho em cada encontro cantante não o prazer do ego massageado, mas, antes, o privilégio de ter fãs amigos ou amigos que se tornaram fãs. Isto é muito, muito, muito bom e ainda, filhos, filha, netos, netas e bisneto. Cada um com sua peculiaridade. Mas, sempre existe um mas. É um menino, paixonite aguda, que de deficiente só o adjetivo. É meu grande amigo do peito. O que entende, quando visto, raramente, a camiseta da preocupação. É aquele que com seu olhar tão profundo me diz frases intensas sem nem ao menos soltar uma silaba. É o enviado que faz a vida parecer bem leve. É o meu beaking vocal que solta, lá do fundo das pregas da voz, sonoros ruídos que parecem sons de anjos cantando. Ainda não vi anjos que cantem, mas, fechar os olhos e sentir a presença de Deus é igual ouvir esta cantoria.  Ufa... the end.
Não simulem paz, sintam a paz. Não falem de amor, sintam sua magia. Não preconcebam as diferenças, olhem com o coração... E que as encrencas e os nós da vida se desfaçam pela presença de Nosso Pai que TUDO PODE. “Nessas voltas da vida o importante é que há VIDA nas voltas que esse mundo dá.”

 

Sim. O amor me amarrou por muitos e muitos anos a um casamento opressivo e castrador. Mas, como a grande maioria das mulheres que se envolvem em situações semelhantes, durante muito tempo eu achei que o amor tudo justificava. E o que eu perdia em termos de liberdade de escolha, ganhava em sentimento e realização através da família que formei, dos filhos que criei, dos momentos que vivi ao lado do único homem a quem amei. 

 

(D livro Henriette- uma canção por amor), em preparação.


[1] Lorraine é uma região histórica no nordeste da França, na fronteira com a Bélgica, Luxemburgo e Alemanha.

[2] Na foto, o batismo de Henriette, com seus avós maternos.

[3] Laurentino Gomes, Escravidão- Vol. 1- Ed. Globo, 2019

 

Nota: as fotos e imagens fazem parte do texto original mas não foram reproduzidas aqui por não se esquadrarem no formado do aplicativo.

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 21/10/2022
Reeditado em 21/10/2022
Código do texto: T7632536
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