O HOMEM QUE NÃO VIA A COR DOS OLHOS

Acordo assustado. Os passos cadenciados faziam estalar o assoalho de madeira. O barulho parecia enorme em contraste com o silêncio da madrugada. Não estava acostumado dormir na casa de outras pessoas, mesmo sendo na casa dos meus avós. Os passos eram do meu avô. Fiquei com os olhos arregalados olhando aquele quarto, não via nada na escuridão. No meu lado meu irmão dormia e meu pai também. As cobertas de pena de galinha pareciam me sufocar. A luz da cozinha foi acesa. O quarto ficou mais assustador pela fraca luminosidade da lâmpada incandescente que passava pela cortina. Cortina estampada e colorida que fazia o papel de porta e dividia a cozinha do quarto.

Um barulho assustador fez eu puxar a coberta até meus olhos. Era da porta dos fundos que dava para o quintal e enroscava no assoalho quando era aberta. Meu avô resmungou com os cachorros que dormiam nos três degraus da escada. Algum tempo depois a porta foi fechada com o mesmo barulho. A dobradiça da portinha do fogão a lenha rangeu. Um fósforo foi aceso e os cavacos de lenha estalavam quando começaram a pegar fogo. A água entrava na chaleira como uma cachoeira. As gotas que escorriam pela chaleira gritavam quando encontravam a chapa quente do fogão.

O barulho de passos no assoalho de madeira voltou, esses mais pesados. Meu pai se levantou. Fiz menção de sair da cama, ele disse baixinho para eu voltar a dormir que não estava na hora. Não dava e os olhos continuavam abertos com o barulho da água aquecendo e a lenha queimando no fogão. A luz fraca iluminou o quarto quando ele passou empurrando a cortina florida.

Tomavam chimarrão. O cheiro de banha de porco impregnou o quarto enquanto era aquecida na frigideira. Clac! Clac! Ovos chiaram em contato com a gordura quente. Broa assada no forno a lenha e ovo frito. Convite para levantar. A escuridão do quarto dizia para ficar deitado. Será que levanto? Espero o pai chamar? Olhei para meu irmão. Dormia. Fiquei deitado.

Uma mão me sacode levemente. Teco acorde, tá na hora de levantar! Acordei assustado - havia adormecido enquanto na cozinha a conversa era lenta e pausada, falavam de parentes que não conhecia, plantação e tempo. Meu irmão já estava de pé, com cara de brabo. Eu estou com sono, queria ficar dormindo. Meus olhos teimam em se manter fechados, não aceitam a claridade da manhã. Meu pai falou mais firme: - vamos!

A manhã no sítio estava fria. Os cachorros seguiam meu avô no trato das galinhas e porcos. Tomamos café saboreando broa com ovo, enquanto meu pai encilhava os cavalos e os engatava na carroça. Quase a contragosto eu e meu irmão fomos em silêncio sentados com o pai no banco, o machado, a serra, e a cunha de ferro estavam acondicionados no fundo da carroça. Silêncio quebrado pelos gritos do pai com os cavalos e pelo ranger das rodas na estrada esburacada e cheia de pedras soltas.

A viagem foi curta e nem deu 500 metros já chegamos no portão de uma outra estrada da roça.

Depois da porteira fechada, na manhã orvalhada, o cheiro do mato mistura-se com o odor dos cavalos. As rodas perderam seu barulho devido à algumas poças de água na estrada que agora era com mato e grama. Enquanto o sol não brilhava com força, no meio do mato uma paisagem sombreada surgiu, provocada pela fumaça. Fumaça que sai vagarosamente de uma chaminé, sem força, caindo sobre as árvores em volta. Chaminé de uma casa de madeira antiga.

Paramos a carroça no quintal em frente a casa. O pai desceu da carroça, eu e meu irmão ficamos sentados. O pai chamou - venham dar benção pra bisavó! Ela apareceu na porta. Fiquei com medo. Ela era velha. Meu irmão foi na frente, eu fui atrás. Subimos os degraus de madeira, fiquei na porta olhando para dentro da cozinha escura. Não entendia o que a bisavó falava, será que era polonês ou ucraniano? Não sei! Com um sorriso no rosto ela ofereceu alguma coisa, bolacha ou era broa? Não aceitei meneando a cabeça.

O pai puxou uma cadeira e sentou junto a mesa. Foi quando percebi uma porção de olhos me encarando. O medo aumentou. Olhos frios, olhos sérios, olhos clementes, olhos fixos, olhos inquisidores, olhos afáveis, olhos tristes, olhos vivos, olhos esperançosos, olhos melancólicos, olhos tirânicos, olhos coloridos: verde, azul, vermelho, preto, castanho, amarelo. Olhos. Na cozinha com iluminação precária os olhos estampados nas paredes me abalaram. Eu mudei de um lado, para o outro lado da porta. Os olhos me seguiram. Sentei na porta olhando a carroça no quintal e as árvores para tentar me distrair. Alguns segundos depois voltei a olhar para dentro da cozinha, os olhos estavam lá, fixos me olhando como antes. Esmoreci. Encostei na parede da porta e fiquei olhando para o chão.

A conversa foi rápida e o pai já estava se despedindo. Eu não me despedi. Subi na carroça e não olhava para a cozinha. Já estavamos andando quando resolvi olhar para trás, para a porta, a bisavó estava na porta me olhando fixamente e ao lado dela vários olhos. Todos os olhos que vi na cozinha escura. A bisavó continuou na porta, os olhos estavam flutuando na minha direção. Com as mãos me agarrei com força no banco da carroça. Os olhos em seus pares flutuavam rápido na minha direção.

Cutuquei meu irmão. Ele respondeu seco: - pare piá!

O mato era fechado e escurecia o caminho, o sol não tinha aparecido ainda. De repente os cavalos aceleraram o trote. O pai assustado puxou os arreios, tentando diminuir a velocidade, os cavalos não corresponderam. A carroça estava descontrolada. Minha respiração estava ofegante, olhei para trás, no ar as cores dos olhos se misturaram e os pares se desfizeram, e separados continuavam em alta velocidade.

Meu irmão gritou: - olha a árvore caída. Olhei para a frente uma árvore estava no caminho da carroça, mas ela não se encontrava estirada no chão, seu tronco formava um arco. Meu pai assustado, ficou de pé e tentava controlar os cavalos e a carroça. A árvore era verde e tinha vida, estava caída, mas não morta, seus galhos eram verdes, e musgos recobriam suas cascas. A carroça passou em disparada pelo arco. Como se nada tivesse acontecido, após passar pelo arco os cavalos desaceleraram e voltaram ao trote normal, tranquilo, pacatos e sem pressa de chegar. O pai relaxou e segurou as rédeas e a carroça parou. Do susto da disparada dos cavalos me aliviei, não estava acostumado a andar de carroça. Olhei novamente para trás, os olhos estavam parados e não ultrapassaram o arco.

A profusão das cores dos olhos misturados, brilhavam intensamente neste momento, como se fossem vagalumes. Enquanto meu pai olhava os cavalos, eu olhava para trás, os olhos estáticos penetravam em minha cabeça e como se apertassem um interruptor de lâmpada, todos os olhos começaram a apagar lentamente. As cores brilhantes iam desaparecendo e ficaram todos num tom marrom e depois cinza e no final restando só um contorno fino, como se feito a lápis escolar preto.

A variedade de cores sumiu e os riscos dos olhos ficaram emoldurados no arco. Neste instante alguns raios de sol surgiram no céu e iluminaram a árvore caída. Pisco duas vezes para ter certeza, árvore caída tinha o desenho e o contorno de um olho. Os contornos dos olhos vieram em minha direção, ergui os braços tentando proteger a minha cabeça, ao contato com minha cabeça eles se dissiparam soltando uma fumaça que sumiu no ar instantaneamente. Os olhos sumiram e os meus lacrimejaram.

Depois de verificar os cavalos, começamos a andar novamente e chegamos ao destino em pouco tempo, uma clareira no meio da mata onde algumas árvores derrubadas se encontravam. Iríamos fazer lenha para o fogão. De repente meu irmão perguntou pro pai: - porque na casa dela tava cheia de calendário de santo pendurado nas paredes? Tinha uns bem antigo lá, tava até desbotado, uns santo que não conheço…

Pai respondeu: - pra proteção, a bisavó acredita tanto nos poderes dos santos que tem medo que aconteça algo com ela se jogar as folhinhas antigas no lixo. Meu irmão disse: - então ela mora sozinha e é protegida pelos santos? Pai respondeu que sim.

Fico pensando: será que por não cumprimentar a bisavó os olhos dos santos vieram me pegar???

...

Alguns anos mais tarde a mulher questiona:

- Como assim você não viu? Ele responde tranquilo:

- Eu vi a criança!

- Mas não viu a cor dos olhos dela? O sinal de que ela estava exaltada era as três rugas na testa e para provocá-la, ou não, ele respondeu seco: - Não!

- Como assim não? Você não viu a cor dos olhos? Ele era ruivo de olhos azuis!!! Você não viu o olho azul? Uma criança ruiva de olho azul e você não percebeu?

- Pra que tanto drama, eu vi que ele era ruivo!

Ela pergunta indignada: - Você sabe que cor é meu olho?

Ele tenta mudar de assunto: - O que você vai querer para a janta?

- Responda!!! Disse ela quase gritando.

Juvenal Tiodoro
Enviado por Juvenal Tiodoro em 21/10/2022
Código do texto: T7632498
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