VISITAS, MIMOS & SEGREDOS
Rua Zacarias Alves Pereira, São José dos Pinhais
O Ford Ka reduz sua velocidade próximo à Praça Constantino Zaniollo, até parar diante de uma casa cor de amarelo-queimado. A voz do motorista de aplicativo resgata Isaura de seus devaneios com um tradicional "chegamos".
- É aqui, não é?
- Sim. É aqui...
A fala atonal da mulher sugere alguma inquietação. O condutor do veículo percebe e faz menção de perguntar algo. Mas desiste. Pois sabe que não é seu papel. E já se arrependeu, no passado, de ter esquecido essa sutileza. O ruído da porta se abrindo e um simpático, mas protocolar " muito obrigado" são ouvidos. Vem, então, o som do acionamento das travas e da seta. O carro vai.
Isaura está de pé, diante do portão. Sacola na mão e bolsa no ombro. Lembranças doces e apreensões percorrem seu interior, enquanto busca a campainha, instalada em canto discreto do portão. Um tradicional e meio dissonante "dindom" se faz ouvir.
Passos lentos e o som abafado de pantufas contra o chão podem ser ouvidos. A visitante sorri, entremeando alegria com com um pouquinho de nervosismo.
- Quem é?
A voz traz consigo a clássica pergunta, porém revela mais: quem a emite tem idade elevada e algum limite respiratório.
- Sou eu, Vó. A Isaura...
É possível sentir os dentes ressoando na resposta. A moradora sabe que ninguém mais consegue falar e sorrir daquele exato jeito ao mesmo tempo. Não que ela conheça, ao menos.
- Oi, Isaurinha! Não sabia que viria aqui. Tem mais alguém contigo?
A inquietante pergunta veio. Embora torcesse pelo contrário, a mulher sabia que não haveria como evitar esse ponto.
- Não, vovó. Sou só eu mesmo. - Responde em tom neutro, para evitar qualquer ideia de que pudesse haver escolhido um lado na história de conflitos, tão presente nas meias conversas da família.
- Ah...certo.
A voz parece demonstrar alívio e desapontamento ao mesmo tempo. Ou então algum sentimento novo e misterioso.
- Só um pouquinho, que vou buscar a chave.
A chave! A mulher não entende porque sua avó não mantém o pequeno e importante instrumento na fechadura após fechá-la. E se a perder? E se precisar sair rápido de dentro da casa? Talvez ela devesse aproveitar a visita para tocar também nesses assuntos. Mas sabe que, na "pauta" das prioridades de conversa, não conseguirá chegar nem perto do tema. Há muitas coisas que ela quer tratar, muitas pendências difíceis, antes de falar sobre rotinas de segurança.
Alguns minutos se passam, até que se ouça outra vez as pantufas arrastando passos pelo piso, em direção à porta.
Um "clac-clac" rouco confirma que a porta se abrirá e que aquela fechadura precisa ser lubrificada. Movimentos concluídos, dobradiças barulhentas removem o que está bloqueando a visão das duas mulheres.
Dona Eulália esboça tímido sorriso, movimentando feixes musculares e rugas de seu rosto. O olhar cansado por trás dos óculos tem brilho genuíno. Cabelos mais que grisalhos denunciam o recente improviso de penteado. E uma inegável lavanda flutuando pelo ar confirma que alguém recém se perfumou. Agora a neta sabe: é bem-vinda!
- Vovó! Que saudades!
- Como vai, querida?
As frases saem quase ao mesmo tempo, deslizando espremidas por um abraço. Eulália suspira fundo e recompõe a fleuma típica dos idosos que aprenderam a posar como enigmas suaves. Daqueles que parecem dizer a quem lhes observa: "Nenhuma tempestade à vista. Ao menos, não à sua vista."
- E então, minha neta, que surpresa foi essa?
Isaura pensa rápido:
- Eu não chamaria de surpresa. Talvez, um rompante de saudades... isso sim!
A anciã sorri.
- Você sempre foi a melhor em adulação. A melhor, na família toda...
A fala é ambígua, mas carinhosa. Ponto para Isaura.
- Está com fome? Posso fazer um café.
- Vozinha, não estou... assim... com fome. Mas aceito um café, sim!
A resposta sai espontânea, entre dentes generosos e reluzentes. Eulália conhece bem esse tom. E gosta muito, pois sabe que há amor de verdade nessa neta.
A anciã se dirige até a cozinha, enquanto Isaurinha pendura sua bolsa numa peça de madeira cheia de alças, postada no canto esquerdo da sala. Em seguida, caminha na direção do barulho da água preenchendo uma velha chaleira, sem largar sua volumosa sacola.
Súbito, cores e formas inesperadas para sua memória cutucam seus sentidos pelo lado esquerdo. Quase que de forma inconsciente, ela vira seu pescoço em direção ao estímulo. Um quadro, com moldura em madeira e proteção de vidro, é visto numa parede para a qual as lembranças da neta juram que nada havia. Múltiplas fotos, organizadas de forma geométrica, repousam na peça ornamental. Aproximando-se das imagens, percebe que a composição é um cortejo de entes queridos de Eulália: irmãos, amigos, filhos, genros, noras, netos, bisnetos. Até mesmo mascotes.
O quadro parece conter todos os seres que tiveram importância em sua vida. Mas Isaura percebe uma grande exceção: Adriana, sua mãe. Ela não está em nenhuma das imagens. Uma sombra cinza toma conta da sorridente neta por breves segundos. Sua visita será ainda mais complexa do que tinha imaginado. Isaura guarda essa informação em algum canto de seus pensamentos e volta a apresentar sua adorável face de boa netinha, entrando na cozinha.
- Posso ajudar, Vó?
- Imagina, querida! Tá tudo certo! Daqui a pouco o café já sai.
A jovem, mesmo assim, decide postar-se de pé, próxima à dona da casa, no mínimo para fazer companhia. Mas antes precisa deixar a grande sacola em algum canto. Ao virar-se para para ver espaço num dos balcões, seus olhos passam pela janela que dá para os fundos do terreno. Roupas e toalhas de muitas cores balançam num simpático e típico varal, daqueles em que o sopro de vento nos tecidos toca melodias nostálgicas que nos trazem antigas e desejadas mensagens, dizendo que tudo ainda está bem; que algumas coisas não mudaram e nem o farão. Imagens e cheiros do passado, das raízes para as quais muitos buscam se voltar quando o avanço de nossas ramificações se anuncia incerto.
Isaura experimenta, por microssegundos, aquela sensação de que ainda é possível deixar de crescer, voltar aos jogos infantis e às muitas brincadeiras com irmãos e primos em terrenos como aquele, enquanto ao fundo, de dentro das casas, barulhos de louças, vozes e risos garantiam que seu mundo de faz-de-conta ainda se fazia seguro.
E é quando ela se deixa levar pela dança dos tecidos pendurados que um balançar desalinhado no varal chama sua atenção. Ela toma um impacto e, ao mesmo tempo, sente-se invasora: são roupas masculinas; inclusive íntimas. Veloz, desvia os olhos da janela e puxa outro assunto com Eulália, fingindo para si mesma não estar curiosa.
- Continua gostando de café bem forte, vovó?
- Hah! Essa era a pergunta que você fazia quando tinha doze anos! Que fofinha!
Risos inocentes em ambas. Mas a neta sentiu a reação de estranhamento da vó. Precisa ser mais cuidadosa.
- Mas, sim... café continua tendo que ser forte para mim. Ainda não sei ficar no meio-termo. Em nada, infelizmente...
A visitante entende o recado da observação. Mas decide fingir não ter percebido. Se quiser ter êxito em alguma conversa hoje, não pode cair em todos os joguinhos de palavras de Dona Eulália. E ela tem muitos. Sempre teve.
- E então, vó, como vai a vida?
- Não tenho queixas da vida, querida. Não muitas. Nada que ocupe demais a minha cabeça ou a alma. Como nunca esperei muito, o que recebo dela dá e sobra...
O café fica pronto. Elas sentam à mesa. Eulália serve a bebida quente e retoma seu discurso.
- Sabe... muitos dirão que estou errada. Que deveria rechear minha cabeça com grandes expectativas e muitas ambições. Que a vida é mais do que cuidar do jardim. Mas para mim, se todos cuidassem de seus jardins antes de se meter a cuidar de qualquer outra coisa, teríamos um mundo bem melhor, viu?
Isaura sorri com educação. Não discorda da essência da frase. Mas já a ouviu tantas vezes que sabe que Eulália, mesmo acreditando em parte desse dito, costuma lançá-la quando quer se defender de ataques que espera receber; ou quando quer julgar alguém por antecipação. A neta entendeu, com o tempo, que a dona da casa é adepta involuntária da máxima "o ataque é a melhor defesa".
- O café está muito bom.
Seu comentário busca mudar o rumo da conversa. Sabe que a vó quer provocar um assunto espinhoso; e tem clareza de a estar visitando por causa disso. Mas está decidida: não ficará com a carga de apresentar o problema. Esta cabe à anfitriã.
- Obrigada, querida! Fico feliz que tenha gostado...
O diálogo se transfere, então, para as canecas subindo e descendo, entre um gole e outro. Adornado por olhares doces, mas reflexivos e tergiversantes. Além de um ou outro ensaio involuntário de riso. A anciã faz o gesto de quem lembra de algo, movimenta a cabeça aregalando os olhos e resgata a conversa de vozes:
- Biscoitos! Eu fiz alguns. Acho que são daqueles que você gosta. Vou buscar...
- Não precisa, vózinha... Mas não vou recusar, não. Eu aaamooo seus biscoitinhos! - Reage, doce e desarmada, a visitante que acaba de voltar aos quatro anos de idade.
No exato instante em que as defesas baixam, e enquanto se esforça para abrir as conhecidas latas para doces, Eulália desfere:
- E como vai a... sua mãe?
Como que alinhada com o momento, a tampa metálica do recipiente irrompe, promovendo ruído seco mas reverberante. Tomada pela abrupta liberação da peça, a moradora tem um segundo de hesitação, o que é suficiente para se ouvir a batida de metal contra o chão.
A sequência desses pontos - que costumam ser corriqueiros - causa ligeiro engasgo nas duas mulheres. Mas não muda o fato do assunto espinhoso já estar sobre a mesa. Aconteceu o esperado por Isaura. Mas não como pretendido. A pergunta, leve, curta e quase protocolar, permite ainda uma fuga de responsabilidade de autoria por parte da mãe de sua mãe. A habilidade de sua resposta, agora, pode ser definidora.
- A mãe? Ah... vai bem. Mas a senhora sabe como ela é, né? Mesmo quando está bem, tem lá seus resmungos...
Eulália conclui a colocação dos biscoitos em antiga travessa branca de porcelana com desenhos e detalhes em dourado. E ao caminhar para a mesa, ora absorta pela preciosidade em suas mãos, ora atingida pelo ruminar da memória, dá o passo esperado pela jovem:
- E eu sou um desses resmungos, com certeza...
- Vó! Por que diz isso? - Retruca a neta, quase exagerando no tom.
A anfitriã ignora, ou finge ignorar, a quase teatralidade da pergunta. E prossegue, cansada de ocultar suas dores.
- Você deveria saber, querida. Mas se não sabe, ou sabe mas não entende, eu explico: eu e sua mãe não nos falamos mais há anos. Porque cumprimentos de Natal e Ano Novo quando há festas da família toda, pra mim, não contam!
Isaura percebe, nas palavras e na voz, camadas de tristeza. De todos os tipos de tristeza. A porta foi aberta. Se quiser chegar ao coração, terá que compartilhar o caminho com todos os fantasmas que o tempo e os enganos produzem dentro de alguém. Precisará parecer serena e receptiva por toda a conversa.
- Pode me contar mais pra eu tentar entender o que se passa?
- Hah! Quer dizer que ela não disse nada? Esses anos todos?
O tom das palavras da mulher que serve os biscoitinhos oscila entre a ironia e a sincera perplexidade. E é possível sentir uma ligeira vantagem para a última. Isaura faz, então, o próximo movimento:
- Vó, a senhora sabe: minha mãe não é a pessoa mais aberta do mundo sobre as razões por trás de seus "resmungos" e tristezas...
- Tristezas? Triste mesmo é uma filha julgar e condenar a própria mãe sem nem buscar primeiro entender. Olhar pra ela como se fosse um personagem de livro, sobre o qual não recaírá dor alguma por causa de qualquer inclemência de quem o lê.
- Julgamento, vó? Ela julgou a senhora? Sem piedade? E como ela se tornou assim?
O tom da pergunta é bem dissimulado, camuflado mesmo com competência, gerando a atmosfera da inocente curiosidade, algo natural numa neta ouvindo histórias de sua vó. Numa neta criança. Mas Eulália parece comprar a doce farsa. Talvez tenha optado fazê-lo.
- Já ouviu a história do balde que é lançado no poço?
Isaura faz expressão de quem não entende a pergunta da anciã.
- Hah! Não me surpreeende... Hoje em dia, se a história não couber numa cena engraçada em tela de celular, nada é contado, né?
A neta faz sorriso ambíguo para o que escuta. É uma frase de efeito, e como toda construção desse tipo, serve pra tudo e pra nada. Mas sabe que alguns ditos dos antigos poderiam ter sido mais preservados; seria benéfico e melhoraria a compreensão dos mundos.
- Por que não me conta, então?
A velha pigarreia e começa:
- Cresci escutando: quando lançamos o balde no poço, a princípio ele está vazio e vai para o fundo da água. Então, fica cheio. Mas à medida em que o trazemos para cima, as outras camadas superiores da água forçam sua entrada no balde. O que já está dentro dele, contudo, tem sua própria pressão e resiste a ser trocado pelo que está fora. Assim, a maior parte permanece igual, só uma pequena quantidade é trocada.
- Isso parece uma aula de física, vó. Hidráulica. - Graceja a jovem.
- Ótimo pensar assim. Preste atenção na ciência, então, pois aceitará melhor a sabedoria do dito popular.
A história é retomada:
- Em muitos pontos, o conteúdo desenvolvido por uma criança enquanto cresce pode se dar igual à composição do líquido trazido no balde enquanto sobe o poço. No começo, tudo entra fácil e fica, sem seleção. Depois é possível modificar alguma coisa. Mas sempre muito pouco. Então, se não sabemos o que passamos para uma criança em seus primeiros anos, depois lidaremos com a tão falada "má educação", quando tolamente ainda ficamos perguntando por que elas não aprendem, por que elas não entendem, por que elas não mudam...
- Uma história interessante, "Dona Eulália"... Isso quer dizer que minha mãe é inclemente porque esse foi seu maior aprendizado de berço? - Desfere Isaura, gentil mas ácida.
Silêncio de palavras. Só delas. Os dois pares de olhos se interrogam de forma fervilhante, enquanto fogem de qualquer resposta. Por sorte, essa é uma daquelas eternidades pontiagudas que duram poucos segundos. Intervalo pequeno, mas suficiente para a esperteza da anfitriã agir, lançando um último obstáculo.
- De fato, sua mãe e todos os meus filhos tiveram um berço meio linha dura... O Osvaldo, teu avô, era um homem às antigas, rígido e sisudo. Não era ruim, mas tinha muitos traumas. Isso o fez não saber a importância do perdão...
"Só ele, né...vó?" Eis o pensamento da visitante enquanto escuta a explicação "isenta".
- Mas e o tio Armando? Ele parece até um diplomata de tão flexível e sereno...
- Armando já nasceu com seu vô amaciado, adoecido, perto do fim.
- Mas ele não é o caçula.
- É sim. Célia foi adotada, ainda bebezinha, quando eu já estava viúva. Era filha de minha prima, que morreu de malária.
- Mas a Célia é meio durona também, não é?
Novo silêncio. Do tipo reflexivo. As vias parecem menos amplas, agora. Ainda haverá como Eulália desviar do caminho antes da esquina da autocrítica?
Súbito, tudo muda outra vez. Isaura toma um susto, pois sua vó solta uma imensa gargalhada.
- Isaurinha, Isaurinha... É por isso que eu gosto tanto de você, mas também perco o sono por sua causa! Você conhece meus truques! E sabe por quê? Porque é mais parecida comigo do que gostaria de ser!
A moça não sabe se reaje, se acredita, se discorda ou apenas dá uma risada junto. Decide-se pela última opção. As duas se olham. Com carinho, admiração e sentindo o coração um pouco menos apertado. Agora os biscoitos são chamados a campo, para entreter a partida enquanto as mulheres reorganizam seus pensamentos.
- Eu fui, sim, muito exigente com a sua mãe. E resisti por um bom tempo aos romances dela. Mas... sabe, minha neta... a meu ver, eu cedi depois. Quando seu pai apareceu na nossa história, eu o tratei muito bem. Nunca fiz nenhuma desfeita. Tanto que, até hoje...
- ... ele aparece por aqui e conversa com a senhora... eu sei...
- Você sabe?
- Sim, vó. O Norberto... quer dizer, o "meu" pai... conta as coisas pra mim. Ele nunca deixou de se importar comigo, mesmo depois da separação.
Eulália engasga. Procura meio aflita um gole de café, pois sente que vem aí uma avalanche para a qual não se preparara. A milenar bebida quente ilumina sua alma e a enche de coragem para não recuar. A via se estreitou, de qualquer forma. Não há mais nenhuma pista de escape à vista.
- P-por quê você o chamou primeiro pelo nome?
Um sorriso sereno anuncia a inesperada resposta, quase dita em tom de quem fala com uma criança ingênua:
- Ai, vovó... vovozinha... Ele me contou tudo.
Silêncio embaraçoso. A neta prossegue, didática:
- Sei que ele é meu pai de coração. O pai biológico foi um primo chamado Erasmo. Que foi embora pra longe depois de uma briga feia em família. E isso foi a gota final pra entornar o caldo entre você e minha mãe...
As órbitas na face da anciã desfilam mais tons de cores que a aurora austral em Ushuaia. Dores secretas vêm à mesa, mas apresentadas de forma doce. Quanto silêncio ao longo dos anos agora parecendo tão sem sentido! Sua neta já sabe. Por quê isso não lhe foi avisado? São meras perguntas retóricas, claro, fruto de seu debate emocional interior. Afinal, também não tem contado o que mudou em sua vida nos últimos anos. Nem tem estimulado alguém a visitá-la, tornando desnecessário tratar disso.
Ao que parece, o mundo girou muito do lado de fora de sua casa. Mais do que ela presumiu um dia ocorrer. Sua neta tem razão: rigidez parece estar no sangue da família. E não é hábito do inflexível ver-se como tal. Este sempre se diz franco, firme, que não gosta de tergiversar, e assim por diante. Não crê precisar rever algo em si.
Foi isso o praticado por Eulália. Foi o que a fez se unir a Osvaldo. E só enxergar nele a parte idêntica em ambos, tornando-os tão próximos e também distantes. A "herança" seguiu para alguns filhos. Mas ninguém é igual. Cada ser assimila os "aprendizados" conforme seus próprios recursos e percepções. No fundo, não existe mistério em como Armando é. Só contraste.
- "Não há esconderijos para a alma; e o tempo não espera." - Murmura a senhora, enquanto despeja desassossego em todos os cômodos e poros.
Isaura escuta e quase diz algo. Quase. Percebe, no último instante, que a fala é um diálogo entre Eulálias. Várias delas, habitantes de uma só. Não cabe interferir.
Buscando se recompor, a anfitriã puxa um assunto que acredita ser novo:
- Acho que ainda tenho daqueles biscoitos que você gosta. Vou lá buscar. Você quer?
Com um sorriso meio embaraçado, a jovem fala com cautela:
- A senhora já os trouxe... E estão de fato uma delícia...
Uma revelação traz à tona outra: esquecimento e repetitividade já estão presentes no roteiro de sua avó, em especial quando está tensa. Mas pensará no que fazer com isso depois.
As palavras se retiram do palco montado sobre a mesa. Xícaras, pires, biscoitos e dentes fazem seus discursos enquanto as almas tomam fôlego. Até começar o próximo ato.
- Sabe, Isaura. Agora, ao me ver forçada a reconhecer que você já é uma mulher feita e sábia - talvez mais do que eu e sua mãe -, penso poder te contar outra coisa. Algo talvez mais forte na minha desavença com ela do que a história do Erasmo.
A moça pensa em dizer já imaginar o que será contado. Mas censura sua presunção e lembra de seu propósito: O ônus das cartas sobre a mesa precisa ser de sua vó. Já se arriscou muito confessando saber ser seu pai o "primo Erasmo", a quem só conhece por fotos. Então mantém expressão solene, ingênua e curiosa.
- Sua mãe achou inaceitável que eu pudesse seguir interessada em ter companhias masculinas.
- Sério? Mas o vovô já se foi há tanto tempo. É natural querer um novo relacionamento. Muitas viúvas voltam a namorar, ou até mesmo morar com alguém. Casar, enfim...
Eulália faz um sorriso ambíguo sob dois olhos contrastantes: o primeiro, expressa glacial tristeza; o outro, incêndio na mata dos sentidos.
A neta é surpreendida por aquela expressão.
- Vovó?
- Ah, minha criança... Eu nunca quis casar de novo. Se eu tivesse feito isso, ela reagiria, mas acabaria por aceitar, eu acho...
As duas se entreolham. Caras de enigma. Um feito por quem sabe a resposta.
- Não sei se estou entendendo o suficiente, mas... a senhora foi uma viúva "pegadora"? É isso, "Dona Eulália"? Esse é o seu grande crime?
A dona da casa ensaia um sorriso irônico, mas este é impedido pelo frio de seu olho triste.
- Minha geração não usaria essa palavra, pois pareceria estarmos dizendo "pecadora". E não, não me vejo e nunca me vi como uma "vassourinha". Pois não se trata de qualquer um. É só um e o mesmo; até um dos dois não querer mais. Aí, sim, procuro outro.
"Vassourinha"? A neta fica perguntando pra si mesma de que século será essa expressão. Eulália prossegue.
- Sua mãe se incomoda um pouco com isso. Mas o que ela não aceita e não perdoa é uma pessoa da minha idade ainda ter paixão. Ainda querer o calor de outro corpo dando vida às tardes silenciosas demais. Nas palavras dela, sou uma "assanhada ridícula"!
Só agora Isaura entende. Aquela roupa no varal só é surpresa pra ela. Sua mãe já sabe. E, se sabe, é porque acompanha a vida da vó. Mais do que acreditava ocorrer. Mais do que as duas genitoras ousam admitir.
Mas não é essa a razão de estar ali. Então, volta para seu foco.
- Vó... Posso dizer duas coisas?
A anciã faz expressão de quem concorda e está curiosa. A neta fala:
- Primeiro: eu acho maravilhoso que a senhora ainda tenha esse tipo de amor dentro de si para compartilhar com alguém. Se eu fosse dizer alguma coisa, seria "vou rezar para chegar na sua idade com esse mesmo pique"!
- As pessoas não deveriam estranhar tanto que um ser humano continue sendo humano, mesmo depois de décadas. Amar me faz ficar viva, ficar humana. Não vejo ninguém estranhando quando pessoas até mais novas acumulam poder e parecem não mais saber amar. Mas isso, sim, deveria causar surpresa...
"Lá vem ela, filosofar para se defender de novo", pensa a neta, enquanto prepara sua grande investida do dia.
- Concordo muito com isso, vó. E por isso mesmo tenho uma segunda coisa a dizer: amar não deveria ser visto como ridículo em idade alguma.
Eulália ouve sua querida visita com mais admiração. Porém, não nasceu ontem. E acaba de sentir que há uma fala sob aquelas palavras. Mas antes que interpele a neta, esta retoma a eloquência.
- Sempre disse isso pra minha mãe, todas as vezes em que ela ousou criticar meus namoros! Principalmente os do ensino médio...
- Espera! Mas uma mãe sempre irá se preocupar com os riscos para seus filhos. Não a julgue tanto assim. Pois muitas vezes fazemos isso por amor.
- Foi o que fez com ela, vovó?
Só agora a anciã percebe: enxergara a armadilha no lugar errado. E acabara por pisar nela.
- Sua mãe foi sempre muito impulsiva! Acreditava em qualquer aceno e galanteio... Eu vivia preocupada que alguém a machucasse. Mas isso nunca foi entendido por ela. A história do Erasmo, por exemplo... Todos nós enxergávamos que seria um desastre...
- Porque ele era um primo....?
Acuada, Eulália ainda acha fôlego para rebater.
- Por isso também. Mas o fato é que sabíamos de sua alma cigana. Mais cedo ou mais tarde, ele partiria o coração dela.
- Mas, do jeito que aconteceu, acabou sendo mais cedo, né...?
Um silêncio dolorido invade o coração da septuagenária. Isaura decide agir rápido; seu plano não é bancar a juíza, mas sim a emissária da paz.
- Vó... não me entenda mal. Talvez vocês tivessem razão sobre meu pai biológico; talvez não. Talvez minha mãe estivesse errada na escolha e precisasse mesmo de uma ação da senhora. E tudo pode ter sido conduzido de forma desastrosa; ou não. Mas o fato é que a ação veio do seu coração de mãe, preocupada com o tanto que o mundo poderia machucar sua filhinha. Inclusive no simples julgamento de convenções sociais. A gente diz que não liga, mas muitas vezes, a depender de onde vivemos, isso ainda tem o poder de nos ferir. E quem quer ver uma pessoa amada ferida pelos outros. Ainda mais um filho, uma filha...?
Comoção e admiração brotam em forma de líquido pelos olhos de Eulália, outra vez alinhados no mesmo sentimento.
- Querida Isaurinha... Que bom que você tenha tanta capacidade de compreender! Sempre foi uma menina muito inteligente... e querida.
- Obrigado! Agora quero pedir que me ajude a acreditar que sou mesmo parecida com a senhora.
- Como assim?
- Compreenda a senhora também: se o amor de uma mãe por sua filha pode gerar tantas situações difíceis por conta da dificuldade de entendimento entre gerações, por que isso não valeria quando o que está em jogo é o amor de uma filha por sua mãe?
Pronto! O laço se fechou no pé da anciã. Não há como escapar agora. Terá que refletir sobre tudo. Pensar com o coração. Avaliar com a alma.
A armadura se corrói. Eulália chora muito. A neta vai rápido até um criado-mudo, no quarto da vó, e traz da gaveta um lenço todo bordado, feito há muitos anos por sua mãe para presente de Natal. Lágrimas são absorvidas nele, conectando diferentes faces da história de três mulheres.
- Ah, Isaurinha... Que inteligente e matreira você é! Mas fico me perguntando se uma conversa assim pegaria o coração de sua mãe também, como pegou o meu...
Um sorriso sai junto com palavras, formando uma frase na boca da visitante. Mais doce do que a esperada pela anciã.
- Não precisa mais se perguntar. Ontem à noite foi a vez dela de me ouvir. E ela também amoleceu o coração, chorando no lenço que a senhora bordou para a formatura.
Surpresa, a dona da casa pergunta com a voz salgada:
- E-ela ainda tem esse presente? O joguinho de lenços?
- Na verdade, uma metade. Pois a outra ela me deu, dizendo: "nunca os perca!".
- Ai, Adriana... Quanto tempo perdido! Duas cabeçudas, duas prepotentes!
"Adriana"! O nome de sua mãe é dito pela primeira vez naquela casa, hoje. Talvez, depois de anos.
- Duas humanas, vó! Que agora poderiam fazer duas das coisas mais mágicas que humanos fazem.
- E quais são?
- Perdoarem-se. E depois marcar um café da tarde, daqueles de mesas bem coloridas!
A idosa ri e retruca.
- Mas aí eu vou querer ajuda para fazer os biscoitos!
- Eu posso tentar. É só a senhora me dar as ordens certas...
- Bom... ao que parece, você pode contar com isso. Ouvi dizer que eu amo dar ordens...
A alfinetada encerra a conversa com gargalhadas. A tarde passa com assuntos mais leves, alguns relatos sobre o mundo do trabalho, confissões amorosas da neta, e uma ou outra troca de receitas.
Já está bem escuro quando a neta decide se despedir e chamar um carro de aplicativo.
Eulália emenda duas frases antes da despedida final:
- Acho que eu vi você chegar com uma sacola, não vá esquecer. Olha, amei nossa tarde!
Isaura se dá conta e põe a mão na cabeça.
- Nossa, já ia esquecendo! É pra senhora! Um mimo que eu trouxe. Espero que goste!
Eulália abre o pacote e vê uma caixa bem ornamentada com doces caseiros dentro. Observa a embalagem sorrindo e diz:
- Doce e rica!
Isaura, meio sem entender, corrige a vó:
- Na verdade, se lê "Docérika". É a marca...
- Haha, bobinha. Eu sei! Conheço esses produtos. Eu estava falando da nossa tarde: foi doce e rica! E esse presente... Que gracinha!
- É só um mimo, vovó...
- E, de novo, é um extra, né? Ver você já é todo o mimo de que precisava para meu dia brilhar! Por favor, venha mais vezes...
- Ah, vó... Puxa, que lindo! Venho sim. Também adoro estar aqui! E da próxima vez, quero ouvir falar dele.
- Ele?
Isaura sorri, aponta pra janela de trás, e fala caricaturando um cochicho típico de fofoqueiras:
- O dono daquelas roupas no varal!
Um riso explode em Dona Eulália, junto com algumas palavras:
- Ah, sua malandrinha! Bisbilhotando, hein!? Isso você não puxou de mim...
- Tá, vó! Sou culpada, confesso. Mas, sem rodeios: vai me contar sobre o seu "peguete" da próxima vez ou não vai?
- Conto, sim, sua enxerida. Mas ele não é um "peguete". Tá mais pra um amigo. Um amigo,,, hã... "colorido"? "Com benefícios"? "Com tempero"?
- Haha... Quando nos virmos de novo, eu te ajudo a escolher um termo atualizado pra ele!
O Uber chega. Elas se abraçam com força. Eulália entra em casa. Seus passos parecem mais ágeis, leves e sonoros.
Isaura segue seu caminho. Irradiando seu clássico sorriso. Que desta vez, mesmo breve, vale pela história de décadas e gerações.