Anteontem

Zími acordou cedo e estava em bom estado, mas nem mesmo a possibilidade de trabalhar em casa assistindo ao noticiário da manhã, que lhe agradava por mostrar ao vivo as condições surreais do transporte público, do qual ele estava livre depois de anos, aliviava a realidade causada pela forma como o povo é obrigado a se deslocar para o como gado de corte.

Por que não havia o menor esboço de rebelião por parte de quem é obrigado a simplesmente doar todo o tempo e energia de sua vida e ainda morrer deixando dívidas para um sistema que cobra caro até para que sejam massacrados diariamente nas máquinas de moer carne que são os ônibus, trens e metrôs brasileiros?

Um colapso social mostrado diariamente, que estraga a saúde física e mental das pessoas, e então ficava claro que um setor precário precariza ainda mais o outro,

Todas as soluções propostas por Zími desde o seu nascimento eram consideradas utópicas.

O noticiário local era interessante, enquanto o noticiário nacional, apresentado na sequência, era bastante deprimente.

Por inércia, deixou a televisão ligada no mesmo canal, e o noticiário deu lugar ao preparo de uma receita que gourmetizava a moela de frango, apontada como solução mais barata para que o povo ingerisse proteínas gastando menos que em outras carnes.

Teve a impressão que a programação, ao invés de realmente salientar que essa sempre foi uma saída financeiramente viável, dava a entender que com a crise aguda e generalizada de então, era possível deixar uma eventual vergonha de lado e comer pelo que se podia pagar.

Para Zími, sempre foi necessário levar em conta o custo-benefício.

Alcançar o mesmo grau de nutrição, com um custo menor que o de outrora. Pode supor que grande parte da audiência, em TV aberta, já dominava as técnicas do custo benefício, por força da necessidade.

Todo o cenário para mostrar o preparo da moela parecia um outro planeta em comparação à vida real das massas, a quem o programa certamente estava direcionado e sendo muito assistido.

Mais um motivo para que se tornasse vegano. O preço do queijo o ajudaria a não trair o movimento.

Com tanta desgraça por toda parte, sentia-se quase culpado por reclamar da vida que levava.

Não chegava a ser uma vida de merda, mas era limitada por falta de dinheiro.

A questão do sofrimento matutino no transporte público era tão relevante para ele, que sentiu por anos um tempo precioso de vida escorrendo para o ralo de uma maneira feia, que mesmo vivendo com um salário mínimo e meio, pensava se não era demais privilegiado por trabalhar em home office, fumando maconha de bermuda e chinelo, bebendo muito café, enquanto alguma estação de metrô entra em colapso.

E entra em colapso numa manhã chuvosa, e compromete todo o sistema da vida de cada uma daquelas pessoas, que estão com guarda-chuva, mas com a meia molhada, esperando por um serviço caro e precário, e tendo vários outros problemas, inclusive o trabalho, que era o destino planejado, em manhãs que em dias comuns já não costumam ser muito promissoras.

À tarde, Zími aproveitava que tinha que trazer algo da rua, então saía, perambulava e voltava à noite.

Na tarde do dia da receita de moela, ele saiu e encontrou Tito, um vizinho que morava no prédio e entrava enquanto ele saía.

Tito era vegano, e seria curioso comentar com ele sobre a crise e as adaptações que as pessoas que comem carne tinham que fazer para não deixarem de comer algo que para essas pessoas é imprescindível.

A maioria dos amigos de Zími era constituída de vegetarianos e veganos. Comia carne, mas não com essas pessoas, e gostava muito da comida deles.

Tito, logo após cumprimentá-lo, disse a Zími que precisava fazer uma redação para a escola.

Carregava um belo case preto e retangular da Fender.

Tito havia abandonado os estudos na sexta série e agora, aos vinte e oito decidiu fazer um supletivo para arrumar um emprego com registro. Exímio guitarrista, fez até ali o que pôde para viver apenas de música, mas as cobranças pela inadimplência como inquilino estavam grandes demais para ele.

Já havia se convidado para integrar a banda Main Drags, que na verdade é um duo, e não teme nunca teria guitarrista, por imposição de Mila Cox, baixista e tecladista, parceira musical de Zími nesse projeto. Não haveria guitarrista nem mesmo para contribuir em momentos específicos. Ela daria conta de fazer o suficiente com o baixo, o teclado e o sintetizador. Zími era o baterista.

Por algum motivo, Tito acreditava que o ingresso na banda lhe daria algum dinheiro.

A tal redação para o supletivo estava deixando Tito aflito, pois teria que entregá-la naquela noite e não demorar para pegar o certificado.

Tito falou: “Então, o tema da redação é ‘Paradoxos’. Escrever sobre qualquer tipo de paradoxo.”

Zími falou: “A única referência possível para entender parcialmente esses paradoxos da vida, é a arte em geral, e em especial, paradoxos no mundo da música. Por exemplo: Sem a Yoko Ono, não haveriam bandas maravilhosas que moldaram nosso gosto musical. Dá pra ficar até depois de amanhã citando nomes, mas vamos ficar só no Sonic Youth e B52`s. O fato dela ser mal vista por muitos talvez seja apenas um fenômeno brasileiro, algo profundamente enraizado na ignorância dessas pessoas, que em ampla maioria não saberia citar o nome de quatro músicas dos Beatles. Ainda que ela fosse responsável pela separação da banda, seria absolvida por ter evitado constrangimentos com algum eventual disco ruim gravado nos anos 70, que macularia a banda e possivelmente inviabilizaria a gravação dos bons discos solo gravados pelos quatro na década de 70. De qualquer forma, a persistência dessa birra mostra que há a persistência da burrice e da preguiça de pesquisar minimamente sobre algo que se propõe a falar, mesmo que bêbado. Bebida não faz ninguém burro, fascista ou racista, então não serve de desculpa para muitas situações palosas as quais a culpa lhe é atribuída. Os Beach Boys também tem grandes paradoxos. Mike Love, repudiado por muitos que atribuem a Brian Wilson o fato da banda ter ficado gigante. Mas MIke Love era importante na fórmula que definiu o som pelo qual são lembrados. Isso durou até 65. Aí veio o Pet Sounds, que Mike Love detestou, e os discos que vieram a seguir são os meus preferidos. De 69 até 73. Há aí o paradoxo relativo ao fato de ser esse o período de vendas mais baixas até então. E outro paradoxo: Nesse período, a banda que era a mais americana de todas na década anterior, agora poderia passar por uma banda britânica. E agradava mais aos europeus, naquela fase, do que aos americanos. Acho “Wild Honey”, “Surf’s Up” e “Holland” ainda melhores que “Pet Sounds”. Mike Love defendeu a fórmula simplória da primeira metade dos anos 60 porque queria dinheiro e não se importaria se a fórmula de surf music e carros durasse até hoje, desde que vendesse bem. Poderia ter evitado gravar seu pavoroso disco solo no começo dos anos 80. Provou que a fórmula só funciona com Brian Wilson. Então, a trajetória de muitos artistas e suas obras dão certa luz sobre paradoxos da vida cotidiana. Há quem não entenda a arte, algo típico de políticos, que associaram “Born in USA”, do Bruce Springsteen, a uma ode à América, e não uma crítica. O sujeito pode ter até entendido, mas usou a canção para expressar outra coisa. Até porque, na época do lançamento desse disco, eu mesmo pensei que se tratada de uma ode ao ‘american way of life’. Mas alguns discos gravados antes, como “The River’ e “Nebraska” salvavam o conjunto da obra. Mas no caso do Bruce Springsteen, houve por parte do público brasileiro uma aceitação, ainda que tardia, ao seu trabalho. E shows enormes e lotados no país. Durante muitos anos, no século passado, eu pensava no quanto seria bom ter a vida de algum desses medalhões que não tinham problemas financeiros. Agora, além deles estarem bem idosos, tem que conviver com problemas reais para os quais o dinheiro não é mais solução. Muitas vezes o problema pode ser justamente a redução da fortuna de outrora, somado à idade avançada, o que causa turnês saudosistas que podem macular um legado de muitas décadas. E esses artistas com décadas de carreira ficam famosos no auge e muitas vezes depois descambam para o saudosismo e a decadência. Logicamente há casos em que a decadência é apenas comercial e não artística. Mas adoro a fase decadente de muitos artistas. Aqueles discos bons para os quais ninguém mais se importava, não tocavam no rádio e vendiam pouco. No rock progressivo isso acontece muito. Em tudo que foi lançado de rock progressivo depois de 1975. Mas se for bom, não importa que não esteja na moda. Vá fazer a porra da refação e termine logo essa merda de supletivo.”

Tito falou: “Valeu, Zimi! Você já me deu uma luz!”

Entrou no prédio com o grande case retangular enquanto Zími saiu para perambular na rua.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 13/10/2022
Código do texto: T7626939
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