Primavera sufocada (fragmentos de um romance)

“Por dentro das coisas… é que as coisas são”! Esta foi uma frase que nunca esqueci, dita por um homem culto, honesto, íntegro, um verdadeiro humanista e a propósito de uma história verídica que ele julgou e atuou com a sabedoria de Salomão.

Infelizmente todos nós temos a tendência de julgar os outros de ânimo leve, fazendo-os passar por um tribunal onde todos são culpados… menos nós! De um modo geral, são condenados sem apelo nem agravo, pelas aparências, pelo diz que disse ou porque nos apetece sermos os primeiros a lançar as “causas”!

Ela é uma mulher rica, viúva, fresca, vistosa, ainda bonita nos seus cinquenta e tal anos, mostrando a graciosidade de uns trinta e poucos. Nos tempos do marido parecia feia e muito mais velha. Nunca se deram muito bem, havia sempre desentendimentos alguns a que eu assisti. Não é que ele fosse um homem mau, pelo contrário! Mas eram diferentes e essa diferença, em vez de os completar, afastava-os cada vez mais. Ele era um homem de trabalho e justificava os bens que deixara, com a ajuda da mulher que nunca virou a cara ao esforço e à iniciativa. Arregaçara as mangas sempre que fora preciso e ele lhe pedira.

Faltaram-lhe muitas coisas: uma juventude feliz e bem vivida, uma alegria, a que nem sempre pudera dar asas porque parecia mal… E uns sonhos, muitos sonhos, que foram dobrados e arrumados em qualquer baú esquecido no tempo.

Tudo acontecera de repente e, de um dia para outro, ficou com o estatuto de viúva!

Como seria diferente se tivéssemos coragem de rir, de sermos felizes, de sermos reis nem que fosse por um dia ou por alguns anos apenas. A vida nunca nos surpreenderia, nem nós aos outros.

Lamentou a perda do seu companheiro de trabalho e pai dos seus filhos mas havia no seu olhar uma nova aurora a despontar. Não pôs luto mas não é por aí que se podem medir sentimentos. Eu também não o usei e acho ridículo porque a maioria das mulheres se vestem de negro apenas para “dar contas” à sociedade!

Aos poucos, aquela primavera da vida tão sufocada aparecia num doce Outono com pinceladas de alegria e prazer. Fez obras na sua mansão, remodelou as mobílias e modernizou todos os compartimentos. As notícias e primeiras críticas vinham dos empregados que afirmavam que se o marido voltasse à terra e presenciasse tudo aquilo, sucumbiria de novo!

Convidou-me para ver o novo visual da casa e gostei do que vi. Havia mais luz, igual à que eu via nos seus olhos. Afinal, ela fora a colaboradora do tiranete na acumulação da riqueza da qual agora era dona e senhora. Fora uma moura de trabalho em casa e nos negócios. Ajudara a ampliar os haveres do casal, era perspicaz e inteligente e nisso ele dava-lhe ouvidos.

Vendeu ou passou parte dos negócios para ficar mais livre e gozar a vida! Um dia desapareceu dos meus olhares mas, ao passar pela mansão a criada informava-me: está a percorrer a América do Sul!

Certo dia encontrei-a na rua, mais magra e muito morena e com um sorriso de orelha a orelha.

Modernamente vestida, pintada ligeiramente e com um penteado mais sensual.

Combinamos um café! Quando entrou houve um ligeiro sururu. Quem a viu e quem a via.

Trazia uma pulseira no pé onde airosamente brilhava uma pequena tatuagem. Tinha um ar feliz, um ar de quem tinha descoberto o mundo, um ar de quem principiou a viver, um ar de quem ainda pensa que a vida começa amanhã…

Começaram os julgamentos, à revelia claro, e as condenações choviam! Mas nada fez apagar a luz nos seus olhos de criança deslumbrada. Pode parecer patético mas a mim enternece-me aquele Outono florido e inspira-me simpatia.

Quando ela passa murmuram da viúva que tirou o luto dos olhos! Censuram-na pelas suas viagens, censuram-na pelo aparato das suas roupas que dão sempre nas vistas, censuram-na por se rir, censuram-na por aquele maravilhoso desabrochar da sua crisálida de esposa infeliz.

Vai a todos os programas culturais, ao cinema, a chás e jantares. Arrasam-lhe a reputação e ninguém lhe perdoa que seja feliz. Ela sabe que falam dela e para calar “as bocas do mundo” aparece com braçados de rosas vermelhas e diz com um ar que eu julgo ser sincero: “São para a campa do meu marido” E todas as semanas lá vai ela ao cemitério comprar a paz que lhe falta. Tem agora sessenta anos (que não parece), dinheiro, saúde mas limitam-lhe a liberdade.

Às vezes, confidencia-me: “Tenho cá dentro um anseio de viver, de espairecer, de ser feliz mas sei que toda a gente me censura e me fazem pagar tão caro…”

Ao que lhe respondo: “Não ligue, por dentro das coisas é que as coisas são. Deixe de pautar os seus passos pelos que o mundo quer e permite que dê. Seja apenas feliz!”

BiaSil
Enviado por BiaSil em 10/10/2022
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