CENÁRIOS DA ROÇA.

O trem de ferro apitou e parou em frente a antiga estação de Januária. O homem saltou do vagão, num ímpeto. A poeira vermelha subiu, com o impacto das botas de couro bem tratado. Ele acenou ao chefe. O funcionário da companhia ferroviária tirou o boné e o cumprimentou. A locomotiva começou a se mover novamente. O barulho das rodas nos trilhos soava como canção aos ouvidos de João Batista. Há décadas morava em Belo Horizonte mas tinha sido criado ali pertinho, na fazenda Três Corações. Ele viu o trem de ferro fazer a curva e se perder no horizonte. A velha estação abandonada, com suas grandes portas azuis desbotadas pelo tempo, pelo sol e pelo descaso. O mato alto em volta. A estação era a lembrança de tempos áureos do império, de intensa atividade das fazendas de leite, da pujante economia da região. Ele subiu na plataforma de grandes tijolos de barro e olhou por uma fresta na porta. O portão de ferro, o balcão do guichê de passagens, os bancos de madeira. Engoliu em seco ao lembrar do movimento que havia ali, quando era um menino de doze anos. Na sua mente, os homens de ternos de linho andando de um lado para outro, preocupados com a chegada do trem do sertão. As malas. A lanchonete com cartazes de refrigerante e cigarro. As mulheres ocupadas com as crianças. O policial, sorridente e gentil, transitando entre as pessoas. O chefe da estação com seu quepe. Os carregadores. Os caminhões com as cargas, parados na rua de terra. Os motoristas fumando e conversando sobre futebol e política. Os jardins floridos. O que tinha sobrado da velha estação tinha sido destruído pelos vândalos. Restos de fogueiras, excrementos, cheiro ruim e pinos de drogas indicavam a ele que ali não era um local tão agradável. -"Melhor sair daqui." Disse a si mesmo, ajeitando a mochila nas costas. O céu azul. As montanhas de Minas ao fundo. Ele suspirou. Olhou a velha estrada pra Januária, que ficava a um quilômetro dali. Já não tinha parentes na cidadezinha, o que o desmotivou a visitar o lugar. Mesmo com as redes sociais, não tinha contato algum com seus conterrâneos. Lembrava vagamente o nome de um ou outro amigo de escola mas a feição deles já tinha fugido da memória. Ele virou a cabeça. Os ipês amarelos indicavam a direção da fazenda onde nascera. Andou um bocado pela trilha. As portas da aposentadoria, o sedentário João Batista olhava as árvores frondosas e altas. Quando menino conhecia o nome de várias delas. O suor escorrendo do rosto. Uma descida íngreme. O telhado do casarão surgiu, arrancando-lhe um sorriso. Após meia hora de caminhada, estava na direção certa. Sacou o celular e começou a filmar. -"Estela. Achei a fazenda que eu nasci. O casarão das fotos, lembra?" A lágrima escorreu. Os óculos embaçaram. Ele apoiou-se na porteira. Ouviu latidos. Os cães da fazenda vindo em sua direção. Olhou para os lados e viu os amigos, Carlos e Antonino, mais conhecido por Nino. Os primos André e Valério. A turminha que ia todos os dias pro ginásio de Januária e passava pela estação de trem. No caminho, verificavam as arapucas de passarinho e colhiam jabuticabas. Os embornais cheios de mamonas, munição de estilingue. As imagens dos cães desapareceram, assim como a dos amigos. Ele entrou na fazenda, pulando a porteira trancada com cadeado. Os flamboyants e ipês formavam uma bela alameda até a fazenda cercada de coqueiros e figueiras. O casarão, ainda imponente, com seus dois andares. Das nove casas da colônia, apenas duas em perfeito estado. O pátio de café. A mata ao fundo. O riacho e o monjolo parcialmente destruído. Ele tirava dezenas fotos. Um carro de bois repousava ao lado de um trator Massey Ferguson, enferrujado e sem rodas. -"Bora passear de trator, Joãozinho?" Ele pareceu ouvir a voz de seu tio Alaor, tratorista e funcionário da fazenda. O arado surgiu, envolto pelo matagal. Pra sua infelicidade, o casarão estava trancado com grossas correntes e cadeados. Os vitrais da porta quebrados. Dava pra ver o piso de madeira da sala coberto de poeira e folhas. Um cartaz grande chamou sua atenção. Casarão da fazenda Três Corações, tombado pelo patrimônio público. -"Tombaram mas não cuidaram. Está abandonado." Pensou. Alguns móveis cobertos com lona preta. João circundou o casarão, tirando fotos. Nenhum vestígio da horta ou do caramanchão. Ele ouviu a música no piano alemão. Lembrou de Izaurinha, a filha do coronel Roberval, que tinha estudado na França e sempre tocava óperas quando o pai retornava de suas comitivas a Goiás e São Paulo. O barulho de botas e o chicote. -"Vão pra casa, molecada." Ele ainda se lembrava das broncas de Firmino, o filho mais velho do coronel, ao ver a molecada nos umbrais das janelas do casarão, ouvindo a moça tocar. O garoto João Batista corria para a casa do Bastião, o preto velho que morava na casa de número três da colônia. Ele tinha o cabelo branco como lã e oitava cachimbo. Era avô de Maurício e Saulo, gêmeos de doze anos, que não frequentavam a escola como os garotos brancos mas eram mais sabidos e espertos que todos. Bastião passava horas contando histórias e lendas. Era ele que alfabetizava os netos. -"Amanhã vou contar a vocês a lenda da Iara, a sereia. Vão pra casa, já é tarde." Dizia o Bastião, notando que Saulo bocejava. Os garotos, um a um, saiam de perto da fogueira onde o Bastião assava batata doce e milho. João Batista foi até o riacho e encheu o cantil. Nem sinal do barranco onde pescava tilápias e bagres com os irmãos, com varas de bambú. Não tinha nojo de brincar com as minhocas, misturadas ao barro, na lata de óleo. A tarde caiu. Com um empurrão, abriu a porta uma das casas. O chão vermelho de cimento queimado. Nos fundos, as ruínas onde havia um chiqueiro e um paiol. Sua mãe tinha um forno de barro, onde fazia pães grandes e quentinhos. O pilão abandonado num canto. Ele lembrou de sua mãe, dando quirela às dezenas de galinhas. Os pés de laranja e goiaba ainda estavam lá, resistentes mas sem frutos. A lembrança das missas dominicais na vila. As quermesses com a tradicional galinhada e o bingo do padre. A noite estendeu seu véu. A lanterna de Led serviu bem. Uma manta. O céu espetacular. Pode ver as constelações perfeitamente como há tempos não via. Sentiu o cheiro de frango com quiabo que sua mãe fazia divinamente. Entrou na casa e jantou sanduíche e refrigerante quente. Seu pai tinha um jirau, onde pendurava linguiças que ele mesmo fazia após matar um porquinho. -"Vai lá, Joãozinho. Leve essa banda de carne pra comadre Francisca. Ela nos ajudou muito quando viemos pra cá." As latas de banha, recheadas de carne frita pra serem assim conservadas numa época sem geladeira. Televisão só no fim da década de setenta, o único aparelho preto e branco no casarão do coronel já falecido. Sentado no chão, veio a lembrança de brincadeiras, as noites chuvosas com a família rezando com as lamparinas de querosene, as viagens pra levar almoço aos irmãos na roça, as modinhas no rádio de válvulas. Lembrava das modas de Tonico e Tinoco, Inezita Barroso, Cascatinha e Inhana. Riu ao lembrar das roupas e costumes. As calças boca de sino, vestidos de chita, camisa xadrez, os cigarros de palha. Há tempos não escutava a cantoria de sapos e corujas. Os vagalumes invadiram a casa onde estava. Armou o saco de dormir, sentindo a friagem e adormeceu. Sonhou com sua infância alí. Em seu sonho, a mãe fazia doce de abóbora no grande tacho de cobre. O pai vinha cansado da lavoura mas sorrindo como sempre. As mulheres lavavam roupas na beira do riacho enquanto as crianças se divertiam subindo nas árvores e pulando na água. As visitas eram frequentes e as portas das casas não tinham chave. O fogão a lenha, o ferro a brasas pra passar roupas, os vidros com geléias caseiras. -"Se arrume, João. A jardineira não espera." A mãe arrumou o filho com a melhor roupa a fim de levá-lo ao médico na cidade vizinha. João Batista lembrou-se de quando ficou doente aos sete anos, preocupando toda a família. Sarou graças as ervas e as rezas da benzedeira Jacinta, repetia a mãe aos vizinhos. -"Era quebranto!" João acordou com o canto do galo. Saiu da casa e não via nenhum galo. Respirou profundamente o ar puro do campo. -"Daria tudo por um café, com pamonha e broa de milho. Leite tirado na hora, coalhada, bolo de aipim e as coisas boas da roça." Disse a si mesmo, admirando o nascer do sol. Na porteira da fazenda tirou a última selfie, com o casarão ao fundo. A trilha, a estação de trem e a caminhada até Januária. A cidadezinha pouco mudara. Tinha asfalto, só isso. As mesmas casinhas antigas, o armazém fechado, a farmácia, o bar na esquina, a padaria, a igreja e a praça. O coreto destruído. Nenhum pipoqueiro nem sorveteiro, como antigamente. Tomou um pingado na padaria, agora com outro dono. Conversou com um ou outro, todos desconhecidos para ele. -"Os tempos mudaram. Parece que o tempo parou por aqui." Soube que um ônibus para Valença passaria por ali, às dez horas. Resolveu ir até a igreja pra passar o tempo. -"De Valença vou pra capital." Era noite quando chegou em casa. A esposa e as duas filhas vieram ao seu encontro. -"Como foi sua viagem?!" Ele não sabia responder de imediato a esposa. -"Bom." Mais tarde, após o jantar, ele contou sua experiência a família. -"Os tempos mudaram, querido. Você saiu de lá mas a roça nunca saiu de você. Está tudo aí, dentro do seu coração." -"Certamente. E nunca vai morrer." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 06/10/2022
Reeditado em 07/10/2022
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