CASA BASTANTE ASSOMBRADA

As 5h ouve-se batidas de pratos e panelas. O pai acorda as 7h e o café está fresquinho. Mesa posta, misto quente, ovos mexidos sem sal, salada de frutas, bolo caseiro, quase uma pousada. O professor lê seu jornal para ter assuntos com a classe. Seu filho, um promissor estudante de Direito, corre os olhos no celular e se assusta com tamanha violência.

A mãe e a filha só acordam as 10h, mal-humoradas. “Maldita fotofobia”, pensaram. Mamãe é pensionista agraciada pelo estado com uma mesada deixada por um guerreiro visionário. Sua primogênita, escolhida pela cota racial, cursa medicina por ter olhos escravos e traços da bisavó indígena. Uma família brasileira batalhadora por seus direitos.

As 10h30 um vulto corre pela casa e deixa tudo arrumado. Ninguém a conhece pelo nome. A invisível já cortou e temperou as carnes e verduras na noite passada. Mesa pronta. Meio-dia o relógio cuco de uma floresta negra distante, toca para a sombra se recolher ao seu quarto mal iluminado e úmido. Único horário que todos se encontram.

O Patriarca conduz uma oração de agradecimento: “Obrigado São João Batista pelas bênçãos derramadas, multiplicai o nosso de cada dia, ajudai os que te pedem, gozai convosco da bem-aventurança eterna no colo do altíssimo, apontai-nos o caminho da salvação e tirai a maldição do mundo. Nos livrai do pecado original e dê-nos dons do espírito. Que sejamos arautos na terra e anjos no céu. Amém.”

Religiosamente devoram o banquete. Pecado é a gula na boca dos outros. Saciados, levantam feitos zumbis e são abduzidos em suas camas. Um vulto em travessuras domésticas já havia ligado o ar-condicionado dos quartos em 21º C, fechado as janelas e colocado a chaleira das 14h em seus criados mudos. Uma proveitosa sesta em família.

Segundo as regras da casa ninguém tira ou coloca um prato na mesa. A Perita em refeições junta as provas da preguiça familiar e monta o seu cardápio com as sobras da comida. Compartilha o resto com um cão vira-lata da família. A pedido de defensores dos animais adotou esse pet na internet e teve que sublocar no quarto das sombras. Soltava muito pelo.

A noite todos saíram para comemorar as bodas de prata num restaurante. Papai bebeu igual a um gerente de banco falido. Na volta foram chamados por São João para um acerto de virtudes. O carro foi imprensado por uma carreta numa encruzilhada por invadir o sinal vermelho. Morreram em um acidente de trânsito. Como não havia herdeiros, o juiz aceitou o testamento irônico feito pela família, deixando os bens para Cacau, o meio perdigueiro adotado.

A tutora de Cacau tornou-se administradora do espólio, deixou de ser vulto ou sombra de panela. Ficou famosa. Dizem na vizinhança que foi pedida em casamento e disputará a próxima eleição. Querem usar sua fama para eleger algumas viúvas de políticos, no cálculo do quociente eleitoral. Infartados de raiva por sofrer perseguições e abuso de poderosos em busca de holofotes.

Bateu numa porta com sede e sumiu ainda criança. Doada como presente de casamento da mãe do professor. Trabalhou quase cinquenta anos na casa da família, trocou as fraldas do filho e dos netos da vovó, em contrapartida ganhava água, restos de comida e o troco do pão.

Muitos vultos assustam o passado de famílias tradicionais. Esses invisíveis têm nomes de Madalena, Maria e José. Só Jesus na causa e na família desses escravos de aluguel.

Como dizia uma assombrada, quase da família, que trocou minhas fraldas: “Não há sorte que não acabe e nem azar que dure para sempre.”

Isaac Machado Azevedo
Enviado por Isaac Machado Azevedo em 03/10/2022
Reeditado em 25/07/2023
Código do texto: T7619792
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.