FLORBELA

A filha do Coronel de Cavalaria Floriano Sales com a dona Isabela Freitas Sales, foi registrada com o nome surgido da junção dos nomes dos pais e confirmado na pia batismal pelo Cônego Motta, numa cerimônia prestigiada por mais de cem pessoas, entre parentes e convidados que depois do ato se empanturraram com uma tremenda feijoada, cujos restos foram distribuídos com os pedintes de plantão no entorno da casa grande de frente para a praça central.

Seguindo a tradição familiar, a roupa da criancinha estava servindo à terceira geração. Fora confeccionada por dona Engrácia, na época em que foi contratada pela senhora dona Mariana Freitas, bisavó materna de Florbela, que era casada com o Barão Octaviano, para ser ama seca de sua filha Isolda, avó de Florbela e mãe de dona Isabela. Sem as preocupações com a manutenção da casa servida por muitos empregados, o tempo que faltava para o nascimento da criança foi totalmente dedicado à confecção do enxoval e dona Engrácia, por ser moça prendada, educada em colégio de feiras, num gesto de boa vontade, confeccionou o vestido enfeitado com aplicações feitas com os retalhos da cambraia vinda da Inglaterra, sobre renda de labirinto. Uma verdadeira obra de arte, tanto que passou a fazer parte do ritual de batismo de todos os nascidos na família a partir daquela data.

Por sua vez, a dona Engrácia, com o passar das gerações, se transformou em dote para a recém-casada e, por conta disso, era o Coronel Floriano quem albergava a velha senhora, obediente como um cão e cuja voz raramente era ouvida.

Florbela nunca aceitou os cuidados da dona Engrácia e sempre que possível, desde a primeira infância acusava-a como autora de qualquer malfeito e, quando na ausência dos pais, expressava seu descontentamento por sua presença na casa que ela julgava ser somente sua. Adolescente, tornou-se um ser intragável, sem amizades, capaz de desdenhar a todos os que, por qualquer motivo, lhe dirigisse a palavra. Seu boletim escolar era pródigo em notas vermelhas, fazendo-a frequentadora assídua das aulas de reforço e de exames complementares. Por ocasião da segunda reprovação, em conversa com os seus pais, a madre diretora do Colégio da Divina Providência, sugeriu que mandassem a filha para o internato da irmandade em Évora, cidade portuguesa fronteiriça à Espanha, especializado em colocar nos eixos as mocinhas irrecuperáveis, pois uma vez aceitas, só tinham duas alternativas para sair, ou diplomadas ou mortas, pois jamais aluna alguma havia conseguido fugir da vigilância da comunidade religiosa.

Os pais resolveram dar mais uma oportunidade e convenceram-na a frequentar a escolinha do bairro para aprender os rudimentos no manejo do piano, a fim de prestar exame para o conservatório de música no centro da cidade, aonde a disciplina e o empenho nos estudos eram exigências inegociáveis. O teste foi um fiasco total, mas por conta da amizade e das gordas contribuições do Coronel para a instituição, a aluna rebelde foi aceita, mas teria que frequentar as aulas do intensivão de segunda à sexta-feira, das 13 às 17 horas.

Galina Kuznetsov fugiu da perseguição soviética. Seu pai fora alto funcionário do governo e, por motivos nunca revelados, morreu num “acidente” depois de uma série de reuniões sobre os rumos das novas políticas. O irmão mais velho e a mãe de Galina, morreram depois de terem participado da ceia com o reverendo da paróquia e o médico que, num dia de alta bebedeira na aldeia onde moravam, comentou sobre a certeza do envenenamento de ambos, também desapareceu misteriosamente. Diante dessas notícias, em vez de voltar para casa, Galina que estava estudando piano no conservatório em Varsóvia, pediu asilo no consulado e veio para o Brasil.

Por aqui não foi difícil arranjar emprego como professora de piano e para sua tristeza, foi indicada como professora de Florbela que, como sempre, indisciplinada e desobediente transformou-se em alvo permanente da dureza das atitudes da severa mestra.

Armada com a vareta com que marcava os tempos de cada nota e os compassos dos exercícios, a professora tanto batia na borda da estante das pautas como nas mãos sem destreza da aluna mal-educada. Toda aula se transformava numa sessão de tortura sem que professora e aluna chegassem a bom termo.

- Não vou mais estudar com aquela galinha.

-O nome da sua professora é Ga-li-na Kuznetsov e você vai continuar até aprender a tocar algo que não fira nossos ouvidos. Chega! Ouviu?

- Não vou voltar lá de jeito nenhum.

- Vai, porque eu estou mandando.

- Se o senhor me obrigar, eu fujo.

- A porta é aquela ali. Saia agora com a certeza de que não retornará.

- Mamãe!

- Não se meta dona Isabela. Isso é ordem do pai desta menina mal-acostumada a ter todas as vontades atendidas. Cavalo xucro se doma com rédea curta e a partir de hoje, eu determinarei o que ela pode ou não pode fazer. Vá para seu quarto agora e só saia de lá quando eu ordenar.

No dia seguinte, antes de começar a aula, a professora informou que o Coronel Floriano pedira um relatório semanal das aulas e do comportamento e que ela seria verdadeira nos mínimos detalhes.

O ódio que estava sentindo por tudo aquilo se concentrou na professora. Era preciso eliminá-la, mas como fazer sem ser notada? Como trazer a espada do pai sem que ninguém notasse? Não havia arma de fogo em casa, mas havia arsênico para matar ratos e esse veneno podia ser colocado na caixa de biscoitos, presentinho de fim de ano para a odienta professora.

Os antigos dizem sempre que cabeça vazia é oficina do diabo.

Tudo muito simples, pediria àquela velha caduca para fazer os biscoitos, depois de prontos, colocaria o veneno e quando a polícia descobrisse, o crime seria atribuído a dona Engrácia. Com uma só tacada, seriam eliminadas a professora e a velha imprestável. Ideia ótima de execução simples, o crime perfeito, sem rastros ou vestígios de sua participação.

Fedor, cãozinho poodle da professora, imaculadamente branco, foi a primeira vítima dos biscoitos amanteigados, imediatamente após ingerir a guloseima. Os sinais de envenenamento que a professora já vira em sua mãe e irmão fez com que ela entregasse o caso à polícia que não teve dificuldade em desbaratar o álibi.

Depois do inquérito e o arquivamento do caso frustrado de tentativa de homicídio, Florbela foi enviada para o internato das freiras em Évora e, antes de completar um ano, o Coronel Floriano recebeu a comunicação de que a filha havia fugido do reformatório e que, segundo informantes, fora com ciganos para a Hungria.

A família vestiu luto e nunca mais se ouviu falar em Florbela Freitas Sales.