A DÍVIDA DO ATEU
Cheguei em casa e antes de acender a luz senti algo estranho, tinha um cheiro diferente no meu apartamento. Eu morava sozinho desde que fugi de casa, conhecia todos os cheiros do meu cafofo, e aquele era algo que eu não reconhecia. Era um lugar pequeno com poucos móveis, apenas o básico para um homem solteiro poder existir. Na penumbra podia ver que tudo estava em seu lugar, mas não deixei de pensar que alguém podia ter entrado ali e estava escondido esperando eu entrar para me atacar. Fiquei paralisado por um momento pensando se devia entrar. Um pouco de razão tomou conta da minha cabeça e percebi que provavelmente eu só estava paranoico. Eu devia ter esquecido alguma janela aberta e o cheiro devia vir lá de fora. Olhei com mais cuidado e todas as janelas estavam fechadas. Dei um passo e o cheiro ficou mais forte, agora eu tinha certeza que não era cheiro de merda ou de gás, era cheiro de gente, meio amargo de alguém que fuma e bebe, meio parecido com cheiro do ônibus lotado as 6 da tarde. Resolvi entrar e fechei a porta, mas algo me impediu de acender a luz. Os móveis pareciam se transmutar em monstros ferozes como os que tinha no meu armário de criança. Pensei que tudo isso podia ser algo mal resolvido na infância, era o que meu psicólogo dizia, tudo era culpa da minha criança interior mal resolvida. Era só acender a luz e resolver logo isso, aceitar a morte se fosse necessário, mas não, algo em mim, achava que podia ter uma chance se continuasse no escuro sem ser visto. Aquilo já era um absurdo, um homem grande, vacinado e que nunca chora segurando sua pasta para enfrentar algum tipo de fantasma fedido, o que iria fazer, bater nele? Todos sabem que fantasmas são transparente. Olha o Ateu acreditando em fantasmas, sou um ridículo mesmo, daqui a pouco vou estar pedindo ajuda de Deus. Um ruído veio de trás do micro-ondas, lembrei da oração que minha mãe me ensinou, mas só um pedaço, que momento para voltar acreditar nos santos, só faltava começar a chorar e chamar minha mãe. Me aproximei do micro-ondas e o cheiro ficou ainda mais forte, agora parecia enxofre. Só que me faltava ter que lidar com satanás agora. Como era o resto da oração? Deus, se me salvar dessa, prometo decorar todas as rezas da minha mãe. O cheiro foi embora e uma aura de calma tomou conta do lugar. Acendi a luz e tudo estava em seu lugar, só que agora tinha feito uma promessa. No outro dia, andava pela praça o ateu endividado em direção a igreja sussurrando “Pai nosso que estais no céu…”