Um lugar para ser feliz
Maísa deu uma série de voltas, embora o seu objetivo específico, quando deixou a turma em casa e pegou o carro, fosse visitar a tia-avó. Era um sábado em que o sol, depois de tantos dias chuvosos e/ou nublados, vertia sobre a cidade seus raios de luz e relativo calor. Depois de dar uma chegada ao supermercado, rodeou por um tempo o local, até encontrar uma vaga para o carro.
Era uma visita anunciada. O fato de avisar que viria colocava-a na obrigação de cumprir a palavra. Considerava importantes aquelas visitas eventuais, que deveriam levar carinho e aconchego a uma pessoa que sempre fora um tanto arredia. Ultimamente, tia Rosa dedicava-se muito a atividades religiosas. Fora do meio religioso, alimentava poucas relações sociais, preferia dedicar-se ao tricô, durante horas seguidas.
A tia demorou a atender. Quando apareceu no batente da porta, com suas roupas um tanto puídas, abriu um sorriso:
– Que bom que encontraste tempo para vir visitar uma tia solitária!
– Sabes que nem sempre posso, a turminha lá me envolve – sorriu ela de volta, enquanto entrava na casa antiga, que fora, em tempos remotos, uma residência vistosa, numa das principais ruas da cidade. A tia tinha o maior orgulho daquela casa, que lhe haviam deixado os pais, herdeiros de antigos charqueadores. Queixava-se, apenas, de não poder mantê-la como merecia.
Maísa escolheu uma poltrona menos afundada do que o sofá e ali se acomodou, tentando entreter a senhora, que aproveitou a oportunidade para relatar-lhe pequenos acontecimentos cotidianos. E assim ficaram por uma boa hora, que foi seguida por um chazinho.
– Comprei um pedaço de bolo, anunciou eufórica.
– Aceito uma fatia pequena, estou de regime.
– Comprei um pedaço pequeno mesmo, não precisas te preocupar.
Depois que tomaram o chá, a sobrinha levantou-se para retirar a mesa.
– Deixa tudo aí, depois eu levo, apressou-se a dizer a tia.
– A faxineira tem vindo?
Ela hesitou, depois deu uma desculpa. A faxineira andava faltando, estava com doença na família.
– Posso te mandar a minha.
– Não há necessidade, eu tenho limpado a casa.
– Mas, é importante que alguém venha de vez em quando, para fazer a faxina grossa.
– Vou levando.
Sabia que não iria convencê-la. Tia Rosa não aceitava que se metessem na sua vida. Desde que perdera o marido, muito jovem, não admitia interferências nos seus assuntos. Infelizmente, devido à idade avançada, não dava conta dos serviços domésticos. Os poucos que a visitavam sabiam que, por vergonha de não estar com a casa em boas condições de higiene, não permitia que alguém avançasse pelo corredor, chegando às dependências internas. Que se ativessem à sala da frente, se viessem vê-la.
Quando a visita se despediu, tia Rosa fechou com chave e tranca a porta da rua. No seu passinho claudicante, levou para a cozinha a louça para lavar.
Em família, a maioria pensava que o melhor para tia Rosa seria habitar uma casa de repouso, onde ela poderia dispor de cuidados e sentir-se acompanhada, mas ela rejeitava terminantemente essa sugestão.
– Tenho outra ideia: tu podias contratar uma pessoa para te fazer companhia e cuidar da casa. Quem sabe...
Tia Rosa cortou a argumentação do sobrinho.
– Não tenho condições financeiras.
Ele continuou:
– A gente poderia te ajudar.
– De jeito nenhum, não quero ninguém aqui comigo. Enquanto eu me mandar, não aceito ninguém.
No sábado seguinte, Maísa aproveitou que os filhos requisitaram o pai para ver filmes e foi dar as suas voltas habituais. Quando terminou, passou pela casa da tia, que vinha se queixando de dor nos joelhos. Estranhou não encontrá-la naquele fim de tarde: a porta da rua estava fechada. Entrou no carro e esperou uns minutos para ver se aparecia.
Quando já se preparava para ir embora, viu-a surgir na esquina.
– Já ia embora. Onde tu andavas?
Como criança que é flagrada fazendo arte, ela falou meio sem jeito:
– Fui comprar uns litros de leite, havia uma promoção no supermercado.
– Mas, tu não estavas te queixando dos joelhos? Aí na esquina tens um bom armazém.
– Vamos entrar. Preciso me sentar.
-- Não tinhas necessidade de ir até o supermercado. Consegues manejar bem esse carrinho?
Ajudou-a a levantar o carrinho de feira para entrar em casa.
– Se quiseres, posso fazer as compras para ti. Arrumo um tempinho para te trazer as coisas.
– Desculpa, querida, mas isso leva tempo. Tu sabes que não compro sem antes pesquisar os preços. Hoje no Avenida o leite estava mais barato do que nos outros lugares. 10 centavos a menos do que no armazém da esquina!
Ela exultava, sentindo-se realmente esperta.
– Se pelo menos chamasses um Uber para te buscar. Estás forçando os joelhos!
– Se chamasse um Uber, o leite sairia muito caro!
– É verdade! Parece que o melhor seria fazeres as compras por aqui. Tens um supermercado pequeno a duas quadras, uns duzentos metros…
Tia Rosa interrompeu-a:
– Fazes como se eu estivesse muito mal! Oh, menina, enquanto eu puder, eu faço da melhor maneira, sim?
Inútil discutir com a tia, ela sempre fora cabeça dura.
– Foste ao médico?
– Sim, mas vou consultar com outro.
– Não te agradou?
– Quer que opere o joelho, principalmente o direito, que me incomoda mais. Não quero operar. Tem gente que opera e não sai mais da cama. Deus me proteja disso!
Maísa olhou o relógio. Hora de ir embora. Tia Rosa pediu que aparecesse com mais frequência, que se sentia muito solitária.
– Vem passar o domingo conosco. O Mauro está planejando um churrasco. Venho te pegar, certo?
– Vou pensar, obrigada, te ligo depois.
Ficou abanando, enquanto a sobrinha se afastava. As paredes da casa, já um tanto descascadas, emolduravam a figura miúda, o rosto um tanto murcho.
A convidada cumpriu a sua parte, mas não aceitou permanecer por muito tempo com a família, à volta da churrasqueira. Agradeceu muito, adorava comer carne, mas pediu que a levassem para casa. Maísa não a viu nos dias seguintes, andava ocupada. O caçula voltou gripado da escola e a mãe se dedicou a ele. O tempo hibernal não ajudava, a umidade parecia dominar tudo. As relações passavam a ser mais telefônicas.
Num daqueles dias fechados, em que apenas nuvens enchiam o céu, Maísa recebeu um telefonema. A pessoa anunciava que dona Rosa Oliveira estava no pronto-socorro e a chamava.
– O que aconteceu com ela?
– Ela se sentiu mal, já fez exames e está esperando os resultados.
– Como está?
– Chegou meio desnorteada, mas está melhor agora.
– Já vou para aí.
Encontrou a tia sentada em uma sala de espera, no meio de várias pessoas. A fala saiu arrastada.
– Quero ir para casa.
– Como chegaste aqui?
– Foi uma vizinha que me trouxe.
– Espera, vou tentar saber alguma coisa.
A tia tinha sofrido um AVC. Tia Rosa foi internada no hospital para tratamento. Não se preocupou, porque havia contratado com a direção do estabelecimento que deixaria a casa para eles no dia em que se fosse. Em troca, teria direito a toda espécie de cuidados. Gratuitamente!
Permaneceu alguns dias no hospital, triste por estar longe da sua própria residência, mas contente por poder contar com um atendimento cordial: havia corrido a notícia, pelo menos entre o pessoal da enfermagem, que ela pagaria a sua permanência ali com um imóvel de considerável valor. O fato de estar rodeada de pessoas, na sua maioria solícitas, afagava-lhe o ego.
Sempre que podia, Maísa a acompanhava. Num desses dias, ela sussurrou:
– Tu sabes que eu já fiz o meu testamento.
– Já faz um tempo.
– A casa vai ficar para o hospital.
– Sou sabedora disso. Já conversamos a respeito. Acho que foste inteligente, podes ficar aqui bastante tempo, não vais gastar um tostão.
– Não vou dar despesa a ninguém.
– Claro.
– E tem uma coisa, também: vou deixar o que tiver de dinheiro para os pobres, para aquela casa de atendimento de que te falei. Vocês não precisam do meu dinheiro, têm mais do que eu. O dr. Ernesto cuidou de tudo.
Dois dias depois, o médico resolveu transferir a paciente para a UTI. A pressão não estabilizava, órgãos começavam a colapsar. Maísa teve um pressentimento de que ela não voltaria de lá, acompanhou-a e juntou os pertences espalhados pelo quarto, que foi liberado. Procurou confortá-la, mas ela não tinha ilusões.
– Isso é o fim.
A tia ainda suportou por uma semana, até que seu corpo descansou. A família se reuniu, compareceu em peso ao velório, para a despedida. Uns rumores, tão discretos quanto possível, se espalhavam pela sala mortuária. Alguns se perguntavam se haveria alguma herança, pois ela economizava cada tostão e poderia ter deixado algo para a família.
Maísa esclareceu:
– Como vocês estão a par, a casa pertence agora ao hospital. Quanto a algumas economias, deixou para os pobres.
– Tudo?
– Não deve ser grande coisa, ela vivia da pensão do marido, que não era grande.
O advogado de confiança da tia explicou que, como ela depositava o seu dinheiro em vários bancos, ele estava reunindo todos os extratos para chegar ao montante dos valores.
Depois de algum tempo, convocou a família para o resultado de suas buscas. Maísa compareceu.
– Dona Maísa, a senhora vai ter uma surpresa. Dona Rosa amealhou o que eu chamaria de uma pequena fortuna.
– Mas como? Ela sempre dizia que não tinha condições. Nem uma estufa ela queria comprar, porque ia sair muito caro! Viveu pobremente nos últimos anos de vida!
– Tenho a impressão de que ela se empenhou para comprar um lugar no céu. É o que lhe digo, deixou uma pequena fortuna, o suficiente para comprar uma casa confortável. Nem eu imaginava!