A Sua Música
20.09.22
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Arrumava seu leito com esmero e cuidado, forrando com folhas largas de papelão o chão frio. Colocava-as sobrepostas para diminuir a dureza do piso. Estava abrigado sob a marquise de uma agência bancária, na qual, pelo lado interno, estava eu a observá-lo pela grande janela de vidro. Ele não me via, seguia o seu ritual e cantarolava uma musica só sua.
Não era nem velho nem moço, meia-idade, cabelos cortados rentes, calvo na fronte, olhos castanhos claros, meia altura. Magro, mas não esquelético. De certo modo e dentro das circunstâncias demostrava certo asseio. Simpatizei-me com ele. Seguia cantando alheio a tudo e a todos. O mundo passava por ele.
Encostado no janelão do Banco junto ao seu leito, estava seu carrinho de supermercado cheio de tralhas, panos, sacos e tigelas plásticas, papelão de vários tipos e tamanhos, enfim, suas poucas coisas. O necessário para sobreviver sem casa ou lugar, na rua.
No chão forrado estendeu um fino cobertor. Depois, retirou de um saco plástico branco, o quê deduzi ser o seu jantar, um largo pedaço de bolo e começou a comê-lo. Satisfeito, jogou o que sobrou na calçada. Achei um desperdício, mas logo veio uma pomba e começou a bicá-lo por entre as pessoas que passavam apressadas. Ela conseguiu levar o naco para a sarjeta e logo vieram outras brigar pela refeição. Ele assistia ao embate sorrindo, pois compartilhou a sua comida com as amigas. Não tinha os dentes da frente. Seu sorriso era fraco e ao rir seus olhos se fechavam. Mas, era simpático e seguia cantarolando a sua musica. Parecia feliz, no seu mundo.
Apagava-se a dia. A noite seria fria, era inverno. Pronto para se recolher, retirou do carrinho algumas revistas e se deitou, cobrindo-se com outra fina manta, que a meu ver, não faria frente ao rigor do frio intenso que viria. Não se incomodou. Cantava a sua musica.
Aninhou-se e começou a folear e ler as paginas de uma das revistas, balbuciando palavras que eu não conseguia decifrar. Ria com algumas, não sabendo eu se do texto ou se de algum pensamento que lhe vinha à mente. Mais pessoas aflitas e apressadas passavam por ele, recriminando-o com feios olhares. Ele sorria e continuava a se entreter com a leitura, que aos poucos ninava-o. O sono chegou e começou a bocejar. A noite caiu de chofre. Ele se encolheu e fechou os olhos, parou de cantar a sua musica.