Um Autêntico Afrodescendente.
Foi à noite, ao crepúsculo. O Sol ainda não havia ido de todo; e a Lua insinuava-se, tímida, a evitar os raios, que lhe feriam a pele, do astro-rei. A noite não caia; escorregava, lentamente, até que, enfim, iria, dali uma hora, e um pouco mais, assumir inteiro domínio do dia.
Estamos no bairro Caxinguelê, nas proximidades de um bar, o Bar do Pimenta, para o qual afluía um respeitável contingente de pessoas de todos os tipos e de todas as crenças, a constituir um microcosmo da sociedade brasileira. Viam-se, lá, o mulato, o mameluco, o cafuzo, o sansei, outros tipos, mistos de árabe e ucraniano, turco e índio, africano e chinês: uma variada multidão. Reunia-se, o que era comum, a nata da sociedade noctívaga do município, nas vizinhanças daquele estabelecimento, ponto de encontro de aristocratas e plebeus, e gregos e romanos, e palmeirenses e corinthianos, de todos o credos, após o encerramento do expediente de trabalho.
Esquecia-me: era uma sexta-feira, véspera de um final-de-semana prolongado. Muitos dos que estavam ali presentes, rumariam, naquela mesma noite, ou no dia seguinte, para Ubatuba e Caraguatatuba, e banhar-se-iam, ao Sol, até bronzearem-se, e queimarem-se, e nos dias seguintes, de regresso da viagem, contariam aos que ao litoral não foram, as aventuras, e exibiriam o corpo temperado de Sol e sal, a descascar-se.
Dentre os que lá estavam presentes, dois, Fernando e Carlos, são protagonistas da história que iniciamos a contar. E são quatro os personagens que animarão a nossa aventura. Os outros dois, Renato e Paulo, irão dar, e daqui não muito tempo, o ar de sua graça.
Após apossarem-se Carlos e Fernando cada um deles de uma latinha de cerveja, eles atravessaram a rua, distanciando-se da multidão barulhenta. E prosseguiram a conversa que haviam principiado logo ao se encontrarem no interior do Bar do Pimenta, e a interromperam assim que Carlos viu, indo na direção deles, Renato, que trazia consigo uma pasta sob o braço direito e à mão direita um copo de plástico com cerveja.
- Veja quem está chegando, Pequim - disse Carlos, indicando a esquerda de Fernando, atrás deste.
- Pequim é a vovozinha - retrucou Fernando, que se voltou para a direção que seu amigo lhe apontara. - É o mala-sem-alça do reino da cocada preta - disse, num tom elevado, para que aquele que deles se aproximasse o ouvisse.
Renato, ouvindo-o, fez-lhe um gesto obsceno, sorriu, acenou para alguém no outro lado da rua, e voltou-se para Carlos e Fernando. Mal havia se achegado a eles, Carlos perguntou-lhe:
- Perdeu-se por aqui, ô, corinthiano?!
Renato saudou-o, e saudou Fernando:
- E aí, Magno?! E aí, Pyongyang?!
- Pyongyang é a vovozinha, ô, filhotinho de cruz-credo - retrucou Fernando, sério.
Saudaram-se, com apertos de mãos, primeiro Renato e Fernando; depois, Carlos e Renato.
- Samurai ninja - disse Renato, enquanto cumprimentava Carlos -, você soube do Paulo?
- Que Paulo? - perguntou-lhe Fernando.
- O Troféu - respondeu Renato.
- O Marcão disse-me que ele foi hospitalizado - informou-os Carlos.
- Eu me dirigi a você, rei destronado? - replicou Renato, desafiador.
- Eu falei com você, ô, súdito, cidadão de baixa extração. Servo! - retrucou Carlos, igualmente desafiador, altivo.
- Vocês dois se amam - comentou Fernando, que perguntou: - Que história é essa de o Paulo haver se hospitalizado?! De que se trata?
- Disse-me o Luis, o da oficina - informou-lhe Renato -, da oficina do São Bento, que a Penélope lhe dissera que o Márcio para ela havia dito que o Paulo envolveu-se num acidente de moto.
- Não é de admirar - comentou Carlos. - Do jeito que ele corre, em ziguezague por entre carros e ônibus, é milagre ele ainda estar vivo.
- O anjo-da-guarda dele fez intensivo e extensivo de segurança particular - comentou Renato.
- Falando no diabo, vejam quem apareceu - disse Fernando, apontando para a sua direita. - O capeta em pessoa.
Renato e Carlos voltaram-se para a direção que Fernando apontara e viram deles se aproximando o personagem de quem os três amigos falavam.
- Ora esta! - observou Carlos, assim que deu com os olhos em Paulo. - Se o Paulo está hospitalizado, de quem é aquela figura feia e mal-acabada?
- É o espectro fantasmagórico do Alemão. - comentou Fernando.
- É um irmão gêmeo do Troféu. - observou Renato. - Tão feio quanto ele.
- É um avatar do Paulo - declarou Carlos. - Ele conta com um número perigosamente escasso de pixels por metro quadrado.
- Sejamos sinceros - pediu Fernando -, o Troféu não tem a cara do Deadpool?
- Nossa! - exclamou Carlos. - Você foi maldoso, Pequim.
- Pequim é a vovozinha - retrucou Fernando.
Paulo, sério, aproximou-se dos três, acenando-lhes. Carregava ao braço esquerdo, pendurado pela alça, um capacete. Assim que se chegou aos seus amigos, saudou-os, primeiro Renato, depois, Carlos, e, por último, Fernando.
- Beleza, Natão?!
- De boas, Troféu.
- Beleza, Carlinho?!
- Beleza, Alemão.
- Jóia, Japa?!
- Jóia, Paulo.
- Ô, Alemão - perguntou Carlos para o recêm-chegado. -, você não está morto?
- Morto?! Eu?! - perguntou-lhe, surpreso, Paulo. - Que eu saiba, não. Estou, aqui, vivinho-da-silva, diante dos olhos de vocês, não estou?
- Morto você não está - comentou, jocoso, Fernando -, mas cara de cadáver você tem.
- Cosplay de samurai - retrucou-lhe Paulo -, não abusa da sorte, não. A sua espada esta enferrujada, e eu tenho comigo um sabre de luz.
- Conte-nos o que se passou com você, ô, germano - pediu-lhe Carlos. - O Marcão disse-me que você estava hospitalizado. E o Renato acabou de nos dizer que a Penélope lhe dissera que você se machucou, e feio, em um acidente de moto.
- O pessoal gosta de boatos - disse Paulo. - Eu não me machuquei, e nem me feri em nenhum acidente. O que aconteceu foi o seguinte: Eu ia pela avenida JK...
- A do Juscelino, ou a do Kennedy? - perguntou-lhe Fernando.
- Qual deles era o brasileiro? - perguntou-lhe Paulo.
- O Juscelino - respondeu Renato, antecipando-se a Fernando.
- Então, foi na do outro, Japa. - respondeu Paulo. - Dizia eu: Eu ia, de carro, pela avenida JK, e vi, não muito distante de mim, um carro, de atravessado na JK, saindo da rua Bandeirantes, para entrar na rua Mata Atlântica...
- Mas é proibido - observou Fernando. - Quem sai da Bandeirantes é obrigado, ao cair na JK, seguir, por esta, para a esquerda, respeitando-lhe a mão. Não pode atravessá-la.
- Exatamente, Japa. - concordou Paulo. - Só que tem um porém: o idiota que dirigia o carro, achando-se muito esperto, quis pegar um atalho até o bairro São Lourenço, ou até o do Cogumelo, ou ao dos Argentinos; e foi aí que aconteceu o imprevisto. Passava, pela JK, um pouco à minha frente, e um pouco antes de passar pela saída para a Mata Atlântica, a moto, que colidiu com o carro que saíra da Bandeirantes. Eu vi a batida. Vi a mulher pular por sobre o carro.
- Não foi o carro que passou por sobre a moto? - perguntou-lhe Renato.
- Não - respondeu Paulo. - O paspalho que dirigia o carro já estava com o carro, no meio da pista, de atravessado, e a moto bateu-lhe, no carro, em seu lado direito, e não no motorista; e este merecia ganhar uma cacetada bem dada no lombo, para deixar de ser besta. A mulher que estava na moto desta foi cuspida, e voou por sobre o carro, e foi cair a uns dez metros de distância. Sorte ela estar de capacete; do contrário, ao beijar o asfalto, perderia todos os dentes da boca. Para a minha sorte, eu, que vinha devagar, pois eu saíra, poucos metros antes, da oficina do Tiquinho, pude frear a tempo de evitar o pior. Assim que sai do carro, fui até a mulher, que, caída, berrava de dor; esgoelava-se, a coitada. E tratei de acalmá-la, em vão, e chamei a ambulância. Para a sorte dela, uma ambulância passava pela rua Marechal Rondon, ali perto, e logo socorreu-a. Peguei do chão os pertences da mulher, entreguei-os para a paramédica. E a polícia chegou. A ambulância rumou ao hospital. Conversei com os policiais, que depois trataram de levar a moto à delegacia, para exame de corpo de delito...
- Exame de corpo de delito na moto?! - perguntou, rindo, Carlos.
- Você entendeu o que eu quis dizer, né, ô, chato-de-galocha?! - replicou Paulo. - Então, não complique.
- "Chato-de-galocha"?! - observou Renato. - Ainda se usa esta expressão?! Ela não caiu em desuso, não?
- Levaram os policiais a moto à delegacia, para a perícia. - prosseguiu Paulo. - Estão satisfeitos?! E preencheram o B.O., e conversaram com o motorista do carro. Eu fui ao pronto-socorro, onde fiquei, a colher notícias da moça acidentada, até que lá chegassem os pais dela.
- Disseram que você estava hospitalizado. - informou-o Fernando.
- Ô, Japa, não acredite em tudo o que você ouve. - sugeriu-lhe Paulo. - Eu não sofri sequer um arranhão. Acredite em mim. Você não acredita no que eu digo?! Você quer que eu me dispa, para que possa ver se há no meu belo e formoso corpo de macho alfa, hematomas, um hematoma que seja? Diga'í, Japa. Quer? Estou ao seu dispor.
- Poupe-me de ver coisa tão horrorosa. - disse-lhe Fernando. - Acredito em você. Acredite, Paulo, que em você eu acredito. Acredite. Sei que será difícil para você acreditar que eu em você acredito, mas, saiba, que eu acredito que você é capaz de acreditar que eu acredito...
- Pare de enrolação, japa nipônico, e vá treinar arte ninja - reprovou-o, jocoso, Paulo.
- Antes que eu me vá embora, Paulo - disse-lhe Fernando, sério, num tom severo, que lhe era incomum, o semblante sobranceiro, que lhe era desconhecido -, peço a você, encarecidamente, que jamais me chame de japa.
- Por quê?! - perguntou-lhe, ensimesmado, Paulo.
Renato e Carlos riram, e sobre a cabeça dos dois pairaram quatro sinais de interrogação e de exclamação, alternados.
- Por quê?! - perguntou-lhe, sério, contrariado, Fernando. - E você me pergunta porquê eu peço a você que não me chame, de agora em diante, de japa?! Não quero que você, Paulo, nem vocês, Carlos e Renato, me chamem de japa. Tenho uma boa razão para pedir, melhor, exigir, que vocês nunca mais me chamem de japa. Nem de japa; nem de Japa. Sabem qual é? Digo: eu sou afrodescendente.
Paulo, Renato e Carlos, que se conservavam atentos às palavras que Fernando lhes dirigia, e ele lhas dirigia num tom firme, peremptório, reprovador, abandonaram a seriedade que até então emprestavam ao semblante, e dobraram-se de tanto rir. Fernando, por sua vez, estampou na fisionomia ar impassível, e ao olhar aspecto petrificante, fitando-os de cima para baixo, a tranparecer a contrariedade e o desconforto que a reação deles às suas palavras lhe provocara.
- Afrodescendente, você, ninja oriental?! - falou-lhe Paulo, que intensificou as gargalhadas, e removeu de si, com o dorso da mão direita, as lágrimas que lhe escapavam, abundantes, dos olhos.
- Você está de brincadeira, né, Pyongyang?! - perguntou-lhe Renato. - É brincadeira!
- Ô, Pequim - disse-lhe Carlos -, se você é afrodescendente, eu sou kryptonianodescendente.
- Vocês estão rindo não sabem de quê - reprovou-os Fernando, sério, carrancudo; o seu ar de seriedade, a sua carranca, inspirava aos seus três amigos seguidas ondas de gargalhadas. Assim que eles se cansaram de gargalhar, ele prosseguiu, no tom de voz que usava anteriormente: - Sim, paspalhos. Tolos! Eu sou um afrodescendente, e dos autênticos, e dos legítimos. Corre pelos meus vasos sanguíneos sangue africano. Vocês conhecem, javardos, a minha árvore genealógica?!
- É um bonsai - disse, rindo, Paulo.
- Boboca! - reprovou-o Fernando. - Vocês não a conhecem. Não a conhecem. Não retrocederei no tempo até a era dos meus mais antigos ancestrais. Para apresentar a vocês a verdade, a verdadeira condição afrodescendente da minha constituição étnica, irei, numa curta viagem através do tempo, até a era dos meus avós, todos os quatro, que nasceram no Japão. É meu avô paterno, o senhor Yasunari, que eu e os outros netos dele chamamos de vovô Yasu, e é minha avó paterna, a senhora Sayaka, vovó carinhosa e meiga. E são meus avós maternos, os senhores Ryūnosuke, o vovô Ry, e Matsuo, a vovó Mamá, um doce de pessoa. Os pais de meus pais nasceram, os do meu pai, o vovô Yasu, em Tóquio, e a vovó Sayaka, em Yokohama; e os da minha mãe, o vovô Ry, em Kyoto, e a vovó Matsuo, em Osaka. Os vovôs Yasu e Sayaka, casados, do Japão mudaram-se para Moçambique, e na capital da antiga colônia portuguesa, Maputo, criaram raízes; e para outra antiga colônia portuguesa, Angola, do Japão foram os vovôs Ryūnosuke e Matsuo, que se instalaram em Luanda. Em Maputo nasceu meu pai, o senhor Shintaro; e em Luanda, minha mãe, a senhora Mitsuyo. Recebeu meu pai a nacionalidade moçambicana, e minha mãe a angolana. E meus quatro avós arrumaram as malas, depois de viverem, os pais do senhor meu pai, doze anos em Moçambique, e os da senhora minha mãe, quatorze anos em Angola, e vieram para o Brasil. E passaram-se os anos. E aqui, na nossa terra, o Brasil, terra em que se platando tudo dá, acidentalmente conheceram-se, ainda jovens, o garoto Shintaro e a garota Mitsuyo, que se apaixonaram à primeira vista. E casaram-se. E da união deles nasceram, primeiro, a minha irmã mais velha, Patrícia, depois, eu, que recebi o nome Fernando, e, por último, a minha irmã mais nova, Kátia. Ora, basbaques, que eu saiba Moçambique e Angola são países africanos. Meu pai, o senhor Shintaro, é moçambicano, portanto, africano; e a minha mãe, a senhora Mitsuyo, é angolana, africana, portanto. Resumo da ópera: minhas irmãs e eu, brasileiros, e legítimos, pois, ao contarmos de 'um' a 'dez' falamos 'um', 'dois', 'três', 'quatro', 'cinco', 'meia', 'sete', 'oito', 'nove', 'dez', somos descendentes diretos de africanos. Correm em nossas veias sangue africano. Somos, e ninguém há de negar, minhas irmãs e eu, afrodescendentes. Entenderam, pacóvios?!
- Entendemos, japa nipônico, ninja e mestre samurai - responderam-lhe, em uníssono, Paulo, Renato e Carlos, que, mal concluíram a frase, e sob olhar severo, reprovador, de Fernando, gargalharam. Fernando conservou a fisionomia carregada o quanto pôde, e não pôde muito.