METAMORFOSE

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BETO MACHADO

Zelina hoje é moradora de comunidade mas até o finalzinho da sua adolescência poderia ser chamada de “Patricinha zona sul”.

Seu pai, “seu” Jorge porteiro muitíssimo considerado do Condomínio Aura Nuvem. Um prédio de quatro andares, construído no final dos anos trinta do século vinte.

Sua mãe, verdadeiramente do lar. Raramente passava pela portaria. Moradores novos imaginavam que “seu” Jorge morava tão somente com sua filha. Outros pensavam que ele fosse viúvo.

O tempo de Joselita era tão raro quão aproveitado e da melhor maneira possível. De manhã, os afazeres domésticos a consumia até a hora do almoço. À tarde, o crochet e o tricot a prendiam até à noite, com a chegada do marido.

Zelina, filha única do casal de “quebra galhos” do condomínio, plantado de cara para o Mar quebrador de S. Conrado, ainda pequenina, brilhava na Escolinha de Surf, cujas aulas eram ministradas por diversos campeões desse esporte carioca.

Joselita não se importava de despender seu dinheiro ganho com as vendas de suas obras artesanais, produzidas com o manuseio das agulhas de tricot e de crochet, nas feiras de artesãos que caracterizam as duas principais praças de IPANEMA: General Osório e Nossa Senhora da Paz. Esse dinheiro era basicamente para custear as pranchas e as vestimentas de Zelina, visto que a educação escolar dela era pública. Zelina seguia à risca os ditames da mãe. E essa bela menina passa da infância para a adolescência sem perceber que esse período é importantíssimo para a fixação na mente dos jovens, os muitos valores e princípios que deverão ficar tatuados no seu modo de vida para o resto de sua existência.

Joselita chega a essa conclusão após o falecimento de “seu” Jorge. As coisas começam a degringolar. Ela vê a fonte de renda da família ser cortada pela metade. O prazo para desocupar o apartamento funcional se esgotando.

Uma reunião de condomínio foi convocada de emergência para resolver a situação de Joselita. DEUS coloca seu dedo no caso. Resultado da reunião: Por decisão quase unânime, os Condôminos resolvem comprar uma casa para a viúva de “seu” Jorge.

A priori, Zelina, na iminência de sair de um apartamento no bairro nobre de S. Conrado, entrou num ensimesmado desespero.

___ Meu Deus, como vou viver sem meu mar, sem minhas pranchas e sem meus amigos? Como vai ser daqui pra frente.

Ela sentia-se como se tivesse se afogando sob as ondas que, antes, eram dominadas por sua técnica e seu talento, mantendo-se sob sua prancha.

Seria o universo de Zelina muito diferente do daquelas pessoas pra onde ela e sua mãe iriam? Onde encontrariam a tal casa? Numa Comunidade? Numa Favela? Num bairro do subúrbio? Essas dúvidas ululavam na cabeça de mãe e filha. Porém, na cuca de Zelina ficava aquele pêndulo se movimentando para um lado e para o outro: Comunidade; favela. Ela começava entender que só havia crescido naquele ambiente requintado por conta do trabalho de seu pai, ora falecido. E dali pra frente seria apenas duas opções: Favela; Comunidade;

De repente Zelina se vê diante de um eufemismo necessário e oportuno: Favela ou Comunidade? Na verdade, essa situação produzia muita tristeza e dor na mente e no coração de Zelina. Dor parecida com a que paralisou o coração de seu pai.

Foi a informação de um zelador do prédio que iniciou o processo de busca da nova residência de Joselita e Zelina.

___ Jô, to sabendo que você ta procurando casa pra comprar.

___ Sim.

___ Tu sabe que eu moro lá nos Prazeres, né? Pois lá tem três. Quer ir lá pra ver?

___ Claro que sim. Vou falar com a Zelina.

___ Amanhã é sábado. Eu te espero lá na estação Carioca do Bondinho de Santa Thereza, às dez horas.

___ Fechado.

Aquela noite nem Joselita nem Zelina dormiram sossegadas. Joselita acordava de meia em meia hora, interrompendo o sono e o sonho com a casa própria. Mas o sonho era teimoso. Voltava com mais vigor e mais colorido.

Zelina e seu gênio complacente relutaram um pouco mas resolveram ir a Santa Thereza, acompanhando a mãe.

O bonde sobe para mais uma viajem até Silvestre, deixando extasiadas mãe e filha, pois nunca haviam observado a Lapa de cima pra baixo. Zelina se arrepia dos pés à cabeça.

___ Coisa mais linda, mãe!

Morro dos Prazeres desponta para os olhos dos passageiros do bonde. Seria ali o novo endereço da “Patricinha” da praia de S. Conrado? A depender da avaliação e aprovação de Zelina, já pode encomendar o caminhão de mudanças.

O bonde pára, os três descem e a casa à venda está diante deles. É um sobrado de estilo clássico com varanda nos dois pavimentos. Reboco e pintura esgarçados pelo tempo mas com a imponência delicada que caracteriza a arquitetura da época. A placa de anúncio tem um número de celular. Joselita e Zelina anotam em seus aparelhos e Zelina sugere que sua ligue mas Joselita teve a idéia de perguntar ao Ivo se ele conhece o corretor pessoalmente.

___ Sim. Conheço. O escritório fica ali na próxima rua. Vamos lá?

___ Claro. É bem melhor falar pessoalmente do que por telefone.

A fachada do escritório com paredes e portas de vidro fumê mostrava um local de profissionais bem sucedidos. Isso remete o pensar do comprador a estar fazendo um bom negócio e bem seguro.

O atendimento foi o melhor possível. E o preço estabelecido pelo corretor é menor que o que Joselita havia pensado, devido à localização do prédio.

Joselita recebera a notícia da decisão da compra de uma casa pra ela, até o valor de setecentos mil reais, com um misto de surpresa e alegria. Agora ela estava diante de um imóvel em Santa Thereza com o preço de quinhentos mil reais. Joselita deixou que seu coração batesse acelerado sem demonstrar reação aos presentes ali na mesa de negociação. Com a calma de sempre, se mostrou interessada em conhecer o interior do imóvel.

Como todo imóvel antigo, aquele carecia de uma boa reforma. Talvez esse fosse o motivo do preço baixo. A divisão interna encantou Joselita. Sala ampla, dois quartos simples e uma suíte, um banheiro em cada pavimento, copa e cozinha conjugadas, área de serviço e varandas: uma em cada andar, além de uma garagem, na lateral do terreno. Nos fundos, um espaço não construído, cimentado ao ar livre, o que remeteu o pensamento de Joselita a uma horta e o de Zelina a uma piscina.

Em respeito à boa vontade de Ivo, o zelador e amigo da família, Joselita resolve visitar os outros dois imóveis a venda. Mas seria muito difícil superar a escolha pelo primeiro visitado. Súbito o celular de Ivo toca. É sua esposa comunicando que o almoço estava pronto.

___ Convida a senhora sua amiga pra vir almoçar com a gente... Aproveita e compra refrigerantes aí em baixo. É mais barato.

___ Ta. Ela ouviu o teu convite e aceitou. A filha dela também está aqui. Nós já estamos subindo.

Aquela recepção mexeu com o ânimo de Zelina que, até ali, parecia alheia a tudo que vinha acontecendo. Agora ela resolveu falar.

___ Estou encantada com o que presencio nesse dia. Acho que tenho outra data de nascimento. Renasci para uma nova realidade. É aqui que eu quero morar, minha mãe. Que povo bonito, Ivo! Eu quero compartilhar com essa gente as suas dificuldades, as suas alegrias e as suas responsabilidades. Quero inserir meu ser nessa comunidade para todos sintamo-nos um só corpo. Um corpo tão social quanto político. Morando aqui eu vou preencher a minha cabeça com conhecimentos necessários para se ter uma vida, verdadeiramente, plena.

___ Filha, que lindo! Teu pai ta lá no céu, orgulhoso de você. E, aqui, eu também.

___ Pois é, mãe, ele morreu mas continua com a gente.

___ Verdade, filha. Não fosse aquela vida correta dele e aquela facilidade de fazer amigos, tão própria dele, a gente estaria “em maus lençóis” hoje.

___ Eu pretendo sempre me mostrar grata a ele nas minhas orações. Tão quanto sou a você.

Zelina é uma jovem atleta das águas; tirou a subida de letra. Já a mãe “estava pela hora da morte”. Quase morta de cansaço.

Amanda, esposa de Ivo, coloca uma cadeira à frente de seu portão para esperar o marido e as visitantes.

O clima estava propício a um esforço físico, até para quem não tem esse hábito de se exercitar. Era um dia de mormaço. Nem chuva, nem sol. Só que para Joselita que fazia da sua casa um casulo, aquele esforço só era compensado por conta do sucesso da busca pelo imóvel a ser comprado.

O bate papo amistoso entre as famílias girou, durante o almoço, entre as diversidades de “modus vivendis” entre as regiões de predominância da classe média. (ALTA SOCIEDADE) e as de classe pobre: leia-se povão (COMUNIDADES).

No fundo o que vale mesmo é a perfeita interação entre esses atores de mesma língua, mesma nacionalidade mas com linguagens diferentes.

Com algum esforço e boa vontade, não vai demorar muito para que a empatia passe de uma simples palavra para ser ação coletiva, como essa praticada pelos condôminos do AURA NÚVEM, lá em S. Conrado, comprando um imóvel para uma família que perdeu seu provedor principal. Assim como a iniciativa individual de um empregado do condomínio, dando informações precisas e até acompanhando a interessada ao local onde a negociação se consumaria com a maior presteza.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 16/09/2022
Código do texto: T7607277
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