MACHO ALFA

MACHO ALFA

BETO MACHADO

Amorim ficou tanto tempo internado naquele hospital da zona sul da cidade, de atendimento impecável e desconhecido da maioria dos cariocas, que seu instinto, após a alta hospitalar, o levou a saltar na estação Cinelândia do Metrô do Rio de Janeiro. Os trinta e nove dias que Amorim passou recluso por convalescência, produziram, na sua mente, um aumento substancial do gosto pela liberdade de estar onde quiser, de fazer o que for possível e de exercer seu direito de escolha.

Ao desembarcar Amorim percebeu que o vagão que o acolhera com aspectos muito diferentes daqueles dos dias normais de trabalho, era só para as senhoras, nos horários de “rush”. Estava, ele, diante de uma Modernidade Explícita. Hoje, as mulheres ostentam um semblante de felicidade, por mais essa conquista. Mesmo acontecendo com uma certa lentidão, ao longo de mais de um século, não foram poucas. E virão mais. O numeroso batalhão de mulheres que decidiram ir à luta só tende a crescer.

Ainda com o metabolismo fraco, pernas bambas e com menos doze quilos, ele sobe, com cuidado redobrado, as escadas que o levam à saída para a Av. Rio Branco.

A semana pré carnavalesca deixa a Cinelândia com cara de “terça feira gorda”. O Amarelinho com todas as suas mesas ocupadas, com foliões a caráter, lidera a folia da região, com um toque chique do seu chope especialíssimo. A criatividade dos cariocas para customizar seus corpos é inacreditável. Enquanto Amorim, vestindo calça comprida e camisa de botões sente-se um peixe fora d’água. Até porque nem toda aquela água amarelada nos copos sobre as mesas, mataria sua sede. Sede transformada em vontade de comer o melhor filé com fritas lá do Galeto da Galeria. E foi pra lá que Amorim se bandeou. No caminho encontrou um amigo que o convidou pra dar uma passada na sede do bloco da Bola Preta. Claro que Amorim enrolou, deu uma desculpa e não aceitou o convite. Sua convalescência ainda estava em andamento. Para sua família aquela paradinha no centro da cidade já era um abuso. Sua cirurgia estava ainda em fase de cicatrização interna.

Imaginem um sujeito sofrer um procedimento cirúrgico, para a retirada de um tumor maligno, tudo bem sucedido e o cidadão, no primeiro dia da alta hospitalar, ir brincar carnaval no bloco da Bola Preta. Não rolou. Ele foi comer seu filé com fritas, pois não lhe impuseram nenhuma restrição alimentar, porém deverá evitar a ingestão de sal, de gorduras em excesso e de bebida alcoólica. A substituição da bebida alcoólica foi facim, facim.

O restaurante Galeto da Galeria serve o melhor suco de laranja daquela redondeza. Desce mais redondo do que qualquer chope ou cerveja. Os garçons demoraram reconhecer Amorim. Sua fisionomia estava realmente muito diferente. Fruto do confinamento no hospital e a dieta rigorosa, a que foi submetido.

A facilidade que Amorim demonstrara para substituir a cevada pela laranja, fora inversamente proporcional à volúpia de devorar, integralmente, as proteínas e os lipídeos do contra filé, deixado, sem nenhuma cerimônia, sobre sua mesa.

Foliões e mais foliões continuavam entrando e saindo da galeria. Uns apressados, outros se exibindo, uns mais perspicazes requebrando, a provocar casais indiferentes ou receptivos.

Um garçom quis saber o motivo do seu desaparecimento. Amorim, prontamente, mostra-lhe, sob a camisa, a bolsa de colostomia que auxilia o intestino em algumas de suas múltiplas funções. O momento não é propício nem para mostrar nem para falar sobre o assunto. Amorim diz que, em outra ocasião, falará mais sobre o caso. A parentada do nosso personagem descobre que ele já recebera alta, mas não estava mais nas dependências do hospital. Desespero geral. Seu aparelho telefônico celular tinha sido confiscado por sua namorada que o visitara no domingo anterior e vira coisas desagradáveis, segundo ela.

Amorim é um cinqüentão serelepe, embrenhado no mundo do samba desde sua infância. Já pertenceu a várias alas de compositores de blocos e de escolas de samba do Rio de Janeiro. Seu jeitão de saracotear, sambando sem tirar os pés do chão, movimentado o corpo com malemolência seduz o olhar feminino. Sua namorada evita ir ao samba com ele. Ela diz que não consegue mitigar seu ciúme, alimentado pelo ódio de ver mulheres comendo seu namorado com os olhos. E ele se apraz com tudo isso. Ego massageado. Alta estima lá nas grimpas.

Amorim cai na real e lembra-se que deve retornar a casa. A plataforma do Metrô abriga somente um por cento de passageiros não fantasiados. Muitos sentados no chão da estação. Seguranças passam e não os incomodam. A composição do Metrô abre as portas e a situação é a mesma. Bundas ao chão!!! Dificuldade para entrar, somada ao incômodo da bolsa de colostomia. Mas Amorim não murmura. É pau pra toda obra. As estações Carioca e Uruguaiana absorveram mais da metade dos passageiros daquele vagão. Uma alma boa oferece o lugar a Amorim, percebendo seu estado de ostomizado. Era uma bela mulher. Olhos brilhantes, contornados por cílios bem cuidados. Seu instinto caçador logo se inquieta. Sujeito assanhado, diria minha avó.

--- Vou sair na Central, Osvaldo Cruz é meu destino. Se você vai direto melhor que continue sentada.

--- Pois eu vou sair na Central também. Mas meu destino é Madureira. Somos quase vizinhos.

--- Conhece o Buraco do Galo?

--- Claro. Amanhã eu vou naquela roda de samba espetacular.

--- Obrigado pela parte que toca.

--- Porque, você toca lá?

--- Sim. Eu toco, canto e saracoteio.

--- Mesmo assim? Com bolsa de colostomia?

--- Não. Eu to vindo do hospital, onde fiquei trinta e nove dias.

--- Nossa!!!! Quanto tempo... Não sei se eu resistiria.

--- Resiste sim. Até porque o mais importante é a nossa vida. Ela vale mais que tudo e que qualquer sofrimento.

--- Tem razão.

--- Só que a minha convalescência não vai impedir que eu vá lá no samba amanhã. A gente pode se ver lá?

--- Com certeza.

--- Sem problemas?

--- Sim. Sem problema nenhum... Livre e desimpedida.

--- Puts!!!

--- E vc?

--- Eu tenho uma namorada. Só que ela não vai ao samba pra não ver as mulheres me olhando com jeitinho de carentes.

--- Hummm! Que presunçoso!

--- Não é presunção. É a realidade.

--- Ou, pelo menos, é sinceridade... Só em dizer que tem namorada, você já provou ser um homem sincero. A maioria, numa situação semelhante se diria solteiro, livre e desimpedido. “like me”.

--- Ô sorte!!!! A mulher fala até inglês!!!! Como é seu nome? Inês, Maria Inês... E o nome da sua namorada?

--- Margarida.

--- E o seu?

--- Amorim.

--- A próxima estação é a minha... Vai com Deus... Amanhã a gente se vê lá no Buraco do Galo. Tchau.

--- Tchau... Não vou nem dormir.

--- Você precisa descansar.

Amorim pôs-se a condenar os efeitos dos remédios absorvidos por seu organismo durante a internação.

--- To ficando bobo por causa dos comprimidos. Só pode ser isso. Não peguei o número do telefone daquele avião. Joguei um monte de conversa fora e o principal, nada. Eu já tava tão caído na dela que nem vi chegar Madureira. – ele falava sozinho, sem prestar a atenção que a sua estação era a próxima. A namorada de Amorim morava na mesma rua que ele. Duas quadras de distância.

Por um triz Amorim não passou da estação de Osvaldo Cruz.

Nascido e criado no bairro do MESTRE CANDEIA, ele diz ser, ali, “mais conhecido que papel sanitário”. Amorim só não imaginava o reboliço que ele provocara, saindo do hospital sem a comunicação devida com os parentes.

Ao passar pelo primeiro bar, já recebe o primeiro susto.

--- Amorim?

--- De carne e osso.

--- Ta correndo um boato por aí que você morreu e o hospital trocou seu corpo... Ninguém sabe pra onde foi.

--- Mas isso não é boato. È fato. O hospital trocou o corpo com que eu cheguei lá há trinta e nove dias, por esse aqui.

--- Porra, Amorim, quer brincar, brinca direito, parceiro. Vai lá na casa da Margarida que ta um fuzuê só. Acho que arrombaram a porta da tua casa... Teve uns babacas que disseram pra ela que te viram num bar da beira do rio, andando com dificuldade e que depois você tinha ido pra casa.

--- Fofoca em Osvaldo Cruz já faz parte da cultura do lugar. Quantos de vocês já não morreram em alguma ocasião?

Margarida quase desmaia quando vê Amorim entrando no seu quintal.

--- Obrigado, meu Deus!!!!

--- Ta tudo bem. Ta tudo bem. To vivo. Já soube da boataria que eu morri. Mas ta tudo bem... Fica calma... É verdade que arrombaram a porta da minha casa?

--- Foi sim, meu amor. Mas foi pelo desespero. Foi culpa minha. Meu irmão foi procurar um chaveiro pra consertar.

--- É que eu preciso tomar um banho e dormir.

--- Fica hoje aqui em casa, amor. Você ta se sentindo bem?

--- To ótimo. Agora o que eu quero é um banheiro pra eu descartar o conteúdo da minha bolsa de colostomia e tomar um banho. Muito tempo na rua. A poeira tomou conta do meu corpo.

--- E o desespero tomou conta de todos aqui. Você não aparecia em lugar nenhum.

--- A falta que faz um telefone celular, heim.

--- Pois é. Morro de arrependimento de ter trazido o teu telefone.

--- Ué, Eu tenho telefone celular? –ironiza Amorim.

--- Peço perdão. Se eu soubesse que você receberia alta já...

--- Já?... Foram trinta e nove dias.

--- Eu sei. Por isso peço desculpas.

---Desculpada.

O instinto masculino de caçador e acumulador de fêmeas fez com que Amorim cumprisse, à risca, a promessa que fizera a Inês, dentro do trem. Passou a noite em claro. Ao contrário, Margarida apagou depois de trocar amassos cuidadosos, devido à intrusa presença da bolsa de colostomia, na cama onde só deveriam estar ela e seu MACHO ALFA.

Enquanto Margarida dormia o sono dos justos, o pensamento de Amorim bailava com Inês. – Será que essa bolsa vai me atrapalhar na dança com ela? – essa pergunta não saía de sua cabeça.

Chegar até às mesas onde se reúnem os bambas do samba de raiz, cultuado, há décadas, naquele ambiente de alegria, foi muito difícil mas prazeroso para Amorim. Dia claro, com céu de brigadeiro, prometia. Um dos organizadores do evento tratou, logo, de providenciar um lugar especial para Amorim, de onde ele veria quem chegasse e quem saísse. Seu tamborim sobre a mesa, bolsa a tira colo pendurada no ombro, parecia que tomavam conta do sambista convalescente.

Microfones ligados, o de Amorim modulado do seu modo, de acordo com sua voz grave; outro fator de sedução que irritava Margarida, nas poucas vezes que o acompanhara à roda de samba. Ela não ouve a voz do namorado daquele jeito, quando ele fala fora do microfone. Acha que é um charme que ele faz. Um chamariz... -- E, as bobinhas caem na armadilha da impostação de voz. Ele é um gênio na arte de seduzir. – ela murmura, sem desistir do seu homem.

O samba tá rolando redondinho e a “casa” tá enchendo. Amorim, de olho na entrada. Até pediu pra cantar por último, contando com a vinda da Inês, um pouco mais tarde. Seu pedido era uma ordem para o mestre de cerimônia. Foi corrigida a folha com os nomes e a ordem de chamada. Nesse exato momento quem é que entra no recinto? Margarida.

Amorim insistia em não acreditar no que seus olhos viam. – logo hoje que a Inês vem aqui!!! Não pode ser verdade. Devo estar delirando. – pensa alto, esquecendo que o microfone estava ligado. O cantor dá uma olhadela pra ele e ele se toca e pára de tocar. Coloca o tamborim sobre a mesa e aguarda o abraço, pelas costas, que Margarida costuma lhe dar, quando está sentado. Vira a cabeça pro lado e dá um beijo na namorada. Ela recebe uma cadeira pra ficar atrás de Amorim. Quando esse se vira pra a frente, pega o tamborim sobre a mesa e olha pra frente, quem é que ele vê entrando no recinto? Inês. As batidas do seu coração aceleraram, num ritmo que ele ainda não experimentara. As sudoríparas triplicaram seu trabalho. A sorte dele é que sambista da antiga não abre mão de andar com lenço no bolso. E ele faz parte dessa turma.

Inês mostrou ser uma mulher vivida e de comportamento impecável. Jamais deixaria de reconhecer Amorim, mesmo tendo pouco tempo de convívio. Na viajem de Metrô e de trem, no dia anterior. Não tinha como não reconhecer aquele mulato alto, de cabelos quase “Black Power”, por conta dos dias que ficou internado. Mas algo não batia com as informações que ele havia lhe passado. Aquela mulher sentada atrás dele seria a Margarida? A prudência a obrigava acreditar que sim. E ela resolveu ser prudente. Foi direto à fila do bar, pois precisava amenizar sua sede.

Amorim sentiu-se um vitorioso. Tudo sob controle. A namorada comportada, sentada atrás dele, Inês agindo como uma mulher discreta, ciente do seu papel, num recinto como aquele; pronto pra virar um barril de pólvora. Seus santos todos estavam conspirando a favor dele. Agora era só esperar o próximo intervalo e, enquanto os músicos aproveitam para “molhar a palavra”, ele fará funcionar sua “teia” e sua “baba de quiabo”.

Mas algum santo de Amorim deve ter “roído a corda”. Inês “deu linha na pipa”. Tomou apenas uma cerveja e “meteu o pé”. Seu sexto sentido lhe informara do risco que corria, dando corda a uma possível aventura amorosa, iniciando naquelas circunstâncias. Por via das dúvidas, deixou seu contato com um garçom que se disse muito amigo do seu desejado. Fim de carnaval pra ela, ainda no sábado. Lembrou de dois versos de um samba carnavalesco: “Amor de Carnaval desaparece na fumaça/ Saudade é coisa que dá e passa”.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 07/09/2022
Código do texto: T7600268
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