LEGADO



  

Legado

O sol escaldante rompe as trevas.

Severino e Anastácia, pobres anciões alquebrados seguem em direção ao roçado.

Vida dura a da terra dos Mandacarus, do Carcará, das miserabilidades.

Trabalham duro, sulcos vicejam profundos nas faces lavadas pelo tempo.

Entardecer, a luminosidade é escassa, na estrada escura acendem as velhas candeias, que titubeiam e lançam ao ocaso suas trôpegas centelhas.

A noite parece murmurar e o silêncio se faz ouvir no farfalhar das folhas secas pisoteadas pelas sandálias endurecidas pelo cansaço.

Os filhos se foram há muito para o Sul, ansiado paraíso dos que buscam por milagres mesmo que para alcançá-los

tenham que passar por labirintos escuros e sorver o fel de águas pútridas.

Jamais tiveram notícias de José, Severiano ou de Domingos.

Escafederam-se pelo mundo de Deus.

O casal vislumbra o casebre de lúgubre aparência: a riqueza que Padim Cícero lhes deixou, um belo legado...

Tênues raios de lua lambém o alpendre deteriorado.

Apáticos, derreados, largam os instrumentos que quase sempre lhes proporcionaram o plantio da macaxeira, do feijão e de plantas para sua caquética subsistência.

- Chegamos balbuciou Severino.

Na mão o velho e enegrecido lampião, fez-se a luz!

- Não temos lenha para o fogão resmungou entre dentes caquerados a velha Anastácia.

Pálida, sem cores, quase sem vida numa súplica olhou para Severino.

- Vou até lá, velha, volto num instante!

- De posse do velho machado abriu a porta do casebre, tropeçou na soleira.

- Meu Deus, quanto sangue, gritava desesperada Anastácia.

Noutro dia ouvia-se o badalar lastimoso dos sinos da ermida.

Não era um, mas dois caixões de defuntos frente ao altar da pequena capela.

Alguns anciões maltrapilhos pigarreavam nos toscos bancos enegrecidos, crianças de olhos esbugalhados tentavam enxergar as tristes passagens.

O caboclo autorizado pelo pároco da cidade próxima pediu silêncio à minguada platéia,  persignou-se e após  encomendou as almas dos desafortunados aos céus.

 

By: Maurélio Machado