Os novos repórteres

OS NOVOS REPÓRTERES

 

Miguel Carqueija

 

 

Oscar de Gouveia foi ao local já motivado por uma convicção de que iria entrevistar um reacionário.

— Não só um sujeito conservador e retrógrado, Cristina. Ele é ultra-reacionário, fascista e direitista. Já chamou os redatores de jornais de imbecis, defende os governos de direita, ataca os de esquerda e assim por diante. Ah: e mete o malho no Gilberto Gil.

— E para que é que nós vamos entrevistar um tipo assim antipático?

— Ordens são ordens. E depois sempre é um assunto...

 

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A mansão de José Machado Costa era bem a de um reacionário burguês e elitista, foi o que Oscar pensou ao vê-la. O famoso escritor, porém, recebeu-o bem, apresentou-o, com a fotógrafa Cristina, à sua esposa Mônica, e mandou servir-lhes refrescos e biscoitos. Oscar tinha 27 anos (uns trinta menos que o Professor Costa) e bastante entusiasmo. Ligou o gravador e começou a perguntar:

— Por que o senhor não gosta que se fale em América Latina?

— Porque é uma burrice. Porque ninguém fala numa Europa Latina, quando haveria mais razão; nem numa África Latina. O termo América Latina é confusionista e, além do mais, racista.

— Racista? Por que o senhor diz que é racista?

— Porque pretende fundir vinte ou mais nações com uma suposta ligação étnica ou linguística. Um sujeito não é latino só porque nasceu no Brasil. Ele pode ser filho de japoneses da gema.

— Sim, mas fala uma língua latina.

— Isso não quer dizer nada. Boa parte da população dos países andinos e centro-americanos é indígena e fala línguas indígenas. A divisão tradicional da América é esta: América do Sul e América do Norte. E mais a América Central, que é um subcontinente.

— Desculpe, mas com isso o senhor tem a pretensão de ser o dono da verdade. Se toda a imprensa, os políticos e a classe intelectual consagraram o termo América Latina, por que só o senhor se opõe?

— Só eu, não. E uma besteira não deixa de sê-lo porque muitos a praticam. Veja a Guiana Inglesa, a Holandesa, Belice, as Bahamas, Antilhas Holandesas etc., nada disso é América Latina!

— Mas toda a América do México para o sul é América Latina!

— Não é, não senhor! A Inglaterra e a Holanda não são países latinos! Logo, as nações que elas criaram na América...

— Tudo isso é irrelevante, senhor. Apegar-se a fatos burocráticos não conduz a nada.

— Escute, meu rapaz. Não é por nada, mas afinal você está me entrevistando ou discutindo comigo?

— Professor Costa, tudo evolui na sociedade humana. Hoje em dia nós repórteres somos estimulados não só a fazer entrevistas frias e distantes, mas a questionar com os nossos entrevistados. O entrevistador deve mostrar que também ele é um ser pensante e inteligente.

— Ah, você se julga um ser pensante e inteligente?

— Claro, senhor! E sou um progressista, isto é, sou mais inteligente que os reacionários.

Por alguns instantes Machado Costa ficou pensativo.

— Então você se julga inteligente, não é? E se eu propuser um teste para ver qual de nós dois é mais inteligente?

— Proponha o teste que quiser, meu senhor. A honra dos progressistas está em jogo.

Machado Costa saiu por alguns minutos e retornou com um pequeno estojo de madeira. Retirou a tampa e colocou a caixa sobre a mesinha de vidro. Dentro da caixa havia um grande número de pecinhas de madeira com variadas formas, perfeitamente encaixadas e enchendo-a completamente.

— Você acha que consegue por tudo no lugar depois de despejar o conteúdo?

— O que? O teste é só isso?

— Não diga “só”. Consegue ou não consegue?

— É claro que consigo! Um simples quebra-cabeça... ora, já vou lhe mostrar!

E assim falando o rapaz pegou o estojo e virou-o sobre a mesa...

 

 

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Três horas depois.

Machado Costa, Mônica, os filhos e netos já jantaram, assistiram tv, leram jornal, jogaram damas etc. O pensador voltou à sala de estar e assistiu a uma cena patética: o repórter Oscar de Gouveia sem gravata e paletó, a camisa aberta, cabelos despenteados, olhos injetados e febris: não estava mais na poltrona e sim ajoelhado ao lado da baixa mesa, metendo frenética e obstinadamente as peças na caixa sem nunca ajustá-las exatamente. Cristina, aflita, altercava com ele:

— Vamos, Oscar! Temos que ir embora! Eu estou com fome! Estão nos esperando lá na redação...

— Eles que esperem! Só saio daqui depois que encher essa maldita caixa! Me largue! Eu mostro àquele reacionário...

Machado Costa chamou Cristina a um canto.

O meu telefone está à sua disposição. Chame alguém da família dele ou do jornal. Ou então, se preferir, ligue diretamente para o hospício.

 

 

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Depois que Oscar foi levado, o Professor Costa sentou-se junto à mesa e pôs-se a reunir calmamente as peças espalhadas. Mônica chegou-se a ele:

— Afinal, querido, como é mesmo que você consegue por tudo no lugar?

Ele tirou do bolso uma folha de papel e desdobrou-a.

— Muito simples. Antes de me arriscar a despejar as peças eu desenhei a posição de todas elas. É o que ele devia ter feito, se fosse mesmo esperto. Sabe, sem olhar o desenho eu nunca consegui armar esse troço!

 

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NOTA em 24 de agosto de 2022:

 

Este conto, que é meio tosco, foi escrito nos primórdios de minha atividade literária, na década de 1970. Eu sempre me interessei por premonições mas nunca me julguei capaz de tê-las. Agora porém, revendo esta história que era inédita no Recanto das Letras, fico pensando se não tive a premonição do William Bonner...

(imagem pinterest)