Queimando a largada
No dia seguinte à festinha de lançamento do primeiro single da banda Hollow Clowns, Zími ficou sabendo por redes sociais que Samir, baterista da banda, havia morrido por overdose de cocaína.
Era considerado grande baterista, pela força, fluência e domínio técnico.
Foi apenas nesse momento, após uma sucessão de bizarrices em sua vida pessoal e também no cenário mundial, que uma depressão se abateu sobre ele.
Sabendo que é impossível se manter animado o tempo todo, Zími considera que o mercado motivacional vende uma farsa, e não uma utopia.
Ele era movido por certas utopias, com ideais muito mais nobres do que tentar mudar essa característica comportamental humana.
Quando acordava em frangalhos, o resto do mundo continuava funcionando da mesma maneira débil e acelerada em direção a um penhasco que se aproxima assustadoramente enquanto o rebanho humano devora a si mesmo para cumprir metas que enriquecem os verdadeiros patrões, ausentes da feiura cotidiana das cidades.
Muitas vezes estão, em plena terça-feira à tarde, em suas lanchas cheias de putas e garrafas de uísque, lamentando com razão a finitude de suas vidas.
Eles têm alguns bonecos remunerados para dar as ordens e que são chamados de chefes, e que muitas vezes também são escravos.
Estão, no entanto, hierarquicamente acima do grande rebanho, cuja diferença em relação ao período oficial de escravidão está apenas nos nomes pelos quais são chamadas as respectivas condições, assim como o percentual de pessoas escravizadas, muitas das quais nem ao menos se dão conta disso.
Muitos, inclusive gostam e agradecem a esse modelo contemporâneo de escravidão.
Os bonecos acima deles servem de modelo para a massa, determinando o que vulgar e popularmente se chama de ‘vencer na vida’.
Mas os capitães do mato, os feitores, as senzalas e as casas grandes também continuam presentes, com outros nomes.
O fato de noventa e oito por cento da população é composta por escravos, dando à massa uma impressão de nivelamento, ainda que sejam nivelados no fundo de um poço frio, sujo e úmido.
O rebanho humano é passivo apenas na relação com esses patrões, mas é bastante selvagem e agressivo na relação com seus semelhantes, que na melhor das hipóteses acordam às cinco da manhã, enfrentam a saga do transporte público, depois cumprem as metas, voltam para casa enfrentando novamente o trânsito dentro de ônibus e vagões de metrô lotados, chegando em casa com a energia vital sugada e às vezes até agradecem pelo dia.
Essa massa anônima que devora a si mesma perece e é substituída facilmente, pois na fila por uma ‘oportunidade’ há milhões de desesperados.
E Zími não escapará vivo dessa desgraça, pois não espera por uma vida melhor após a morte, despreza pastores picaretas que vendem terrenos no céu e exploram o rebanho através do medo.
E as escolas sucateadas continuam a formar analfabetos que saem dali sem ler, escrever ou fazer contas, prontos para serem esmagados pela grande máquina de moer carne.
Zími fez faculdade de Jornalismo e ali só recordou que está na mesma cilada que seus semelhantes, e essa consciência lhe serve apenas para tentar um caminho menos tortuoso, permeado pela arte, especialmente música e literatura, com predileção por gêneros que esclarecem essa condição humana precária.
O suicídio não é solução para ele, pois sabe que a vida dará conta facilmente de matá-lo, e ele quer ver até onde consegue chegar vivo, e ver até que ponto as coisas podem chegar, e talvez presenciar o fim de toda essa farsa, por meio de uma iminente hecatombe.
Sua fé e esperança consistem em viver até que isso aconteça, para que finalmente, pelo menos por um momento, sejamos todos iguais e nas mesmas condições.
Zími considerava repugnante o fato de ter sido gerado, e consequentemente não teve filhos, o que o ajudava a lidar com tanta desgraça.
Sabendo que a vida em si não tem sentido algum a ser descoberto filosoficamente, ele procurava dar a ela esse sentido.
Ele trabalhava em casa, não enfrentava trânsito, nem chefes, nem colegas de trabalho.
Pagava aluguel, comprava comida e ia ao cinema.
Podia viajar, porque tinha uma banda, o duo Crop Circles, que viajava de chevette pelo interior para shows pequenos, em troca de cerveja e gasolina, e onde podiam vender algum merchandise, para pagar pela comida ao longo do rolê.
Mila Cox era a parceira musical de Zími no projeto, e também sobrinha de Samir.
Zími recebeu a notícia da morte de Samir e ainda não sabia como Cox havia reagido ao fato. Sabia apenas que a partir de então, era mais importante do que nunca levar o projeto adiante.
Conseguiam vender os cd’s e camisetas que levavam, o que parecia um sinal de aprovação por parte do público, embora durante as apresentações houvesse um silêncio causado por um misto de curiosidade e perplexidade, sem nenhum murmúrio de aprovação ou dissidência.
Muitas vezes, nessas viagens, dormiam no carro, desde que arrumassem algum lugar para cagar e tomar banho.
Não raro, o público era composto por gente que nunca viu uma guitarra na vida.
Nos shows da banda eles continuavam ser ver guitarra, pois a banda era composta por ele na bateria e Mila Cox no baixo, no Moog e no sintetizador.
Na fase embrionária da banda, tentaram vários guitarristas, mas por considerarem que todos pecavam pelo ego inflado, adaptaram o som para que a guitarra fosse substituída por efeitos sonoros do Moog.
Seus temas eram destruição em massa, apocalipse, extinção, dor e o circo de horrores do cenário político, com letras minimalistas entre ruídos aparentemente aleatórios.
Ele morava no centro de São Paulo, tinha uma bicicleta e além de trabalhos acadêmicos que fazia para os outros em troca de algum dinheiro, também comprava, trocava e vendia livros.
Revoltava-se contra a arquitetura urbana da região em que morava, pois esta é bastante hostil para pessoas em condição de rua, que em número cada vez maior, ocupavam a região do centro.
Era muito mais velho que Mila Cox, que nasceu no século vinte e um e usava a tecnologia que tinha disponível para fazer música, gravá-la e distribuí-la partir de um computador.
Ela era copywriter e ainda nem sabia se cursaria alguma faculdade ou não. Morava com a avó no bairro da Penha, e fazia cookies de aveia e chocolate amargo nas horas vagas.
Gostavam de Alex Chilton e Leonard Cohen, mas faziam um som completamente diferente desses artistas, que embora atemporais, não se enquadravam na realidade com a qual tinham que conviver, seja na vida prática do cotidiano ou na parte artística de suas existências.
Tinham grande paixão pelos discos gravados entre 1968 e 1972 pelos Beach Boys, que nunca são lembrados e permanecem quase obscuros, apesar da beleza das composições. Essa quase obscuridade dentro da obra de uma banda famosa talvez seja uma das razões para o culto por parte deles.
Para Zími, Mila Cox era uma espécie de Laurie Anderson. Para ela, Zími era uma espécie de Slim Jim Phantom.
Ela usava redes sociais para divulgar a banda e marcar shows, principalmente em cidades pequenas, e ele, que tinha grande desprezo pelas redes, tinha como foto de perfil uma 3x4 em que aparece com uma batata frita enfiada na narina esquerda.
Zími agora estava preocupado com Mila Cox por causa da morte de Samir, e esperou que ela o procurasse para se manifestar, enquanto fazia a letra de uma música em homenagem ao amigo.