OS CORRUPTOS
OS CORRUPTOS
(ACONTECEU NUM LUXUOSÍSSIMO RESTAURANTE DO LAGO SUL DE BRASÍLIA).
- Quero um filé de peixe ao molho de tamarindo e vagem cozida na água e sal, bem verdinha. Sal puro mesmo! E azeite de oliva. Puríssimo!
- Algo mais, senhor?
- Morei nos Estados Unidos!
- E... ?
- Lá eu era Busboy!
- Quê isso?
- Um tipo de serviço que a gente faz em restaurantes, recolher das mesas utensílios usados pelos clientes!
- Ah! Sou louco pra ir pra lá. Faturar uma grana! Vim do Maranhão há pouco tempo. Aqui a gente rala muito e ganha uma merreca. Nem dá pra sobreviver. Algo mais, senhor?
- Só um lembrete: se por acaso o peixe tiver espinho, um espinhozinho sequer, processo o restaurante!
A ameaça soou bem séria. Logo após, o cliente voltou a comentar:
- Nos Estados Unidos não se encontra espinho em peixe. Nem pra remédio! Aqui é essa m... ! Mais espinho que peixe!
- Certo! Vou dizer ao Chef!
O garçom saiu apressado. Outro cliente, sentado à direita do exigente, se dirigiu a ele, puxando conversa. Esse era um homem grisalho na casa dos 50, muito bem vestido e perfumado, o qual exibia na mão peluda, um anel de formatura.
As mesas estavam próximas, mas os dois trocaram apenas poucas palavras. Vinte minutos depois o garçom voltou com o pedido. O cliente que disse ter morado nos Estados Unidos pediu licença e começou a comer. Quando terminou a refeição, o homem grisalho quis saber:
- Satisfeito?
- Sim!
- Disse que morou nos Estados Unidos. Também morei. Fiz Pós na Harward. Realmente o que disse a respeito do peixe é verdade. Lá a coisa é séria!
Falou sem olhar para o exigente cliente, remexendo no prato onde havia uns restinhos de comida.
- Não encontrou espinhos?
- Graças a Deus não!
O grisalho brincou com o garfo, ao mesmo tempo em que enfiava a mão direita no bolso do paletó, de onde puxou uma carteira. Abriu-a e tirou uma identificação de Advogado, que deixou discretamente visível sobre a mesa
- Também comi peixe, mas não dei tanta sorte assim. Veja!
E mostrou os espinhos.
- Não mesmo!
- O senhor ameaçou processar o restaurante caso encontrasse espinhos. Podemos abrir o processo.
Disse, remexendo ostensivamente alguns espinhos no prato com o garfo e com a outra mão, alisando a carteira de advogado.
- Como?
- Deixa eu lhe dizer!
Logo após, houve uma troca de olhares mais intensa entre os dois, uma aquiescência, e começaram a conversar novamente. O garçom voltou. O exigente freguês mudou de postura.
- Eu disse que processava o restaurante se encontrasse espinho. E isso aqui, o que é? Me diga!
O garçom ficou embaraçado, sem argumentos. Gaguejava, tentando encontrar as desculpas necessárias. O grisalho se intrometeu, enfiando a mão no bolso do paletó e tirando a carteirinha de advogado que havia guardado.
- O cliente tem razão! Poderia ter se engasgado. Estou aqui como advogado para defender os seus direitos! Gostaria, senhor?
O garçom arregalou os olhos. Achou a situação meio estranha, mas imediatamente mudou de atitude.
- Querem saber de uma coisa? Tô por aqui com esse restaurante. Pedi pra me mandarem embora e eles não estão nem aí. Nós três podemos ferrar o dono!
Os dois clientes, embora surpresos, responderam quase em uníssono.
- De acordo!
Para ganhar tempo e traçar a estratégia do golpe, o advogado pediu outro filé de peixe, um suflê de damasco e uma taça de vinho, completando:
- Então estamos combinados. Vamos arrastar uma grana aqui. Traga o meu pedido, dê um tempinho, depois chame o Gerente. Vamos ameaçar um escândalo pra ver no que dá!
O garçom saiu quase correndo. Não demorou muito e voltou com o pedido. Quando viu que o Advogado estava terminando o suflê antes mesmo de comer o filé, voltou à sua mesa. Conversaram. Depois foi até o scotch bar e chamou o Gerente. O cerco estava se formando.
O Gerente, um rapaz jovem, alto e louro, trajando um caríssimo terno azul-marinho, veio até a mesa do exigente freguês. O garçom se antecipou:
- Este senhor quase se engasgou. Encontrou espinhos no peixe. Ele já morou nos Estados Unidos e lá, espinhos dão processo. O senhor sabia disso?
O Gerente arregalou os olhos verdes, que de um segundo para o outro se tornaram cinza. O exigente freguês confirmou, mostrando uns três espinhos colocados cuidadosamente num canto do prato, enquanto o grisalho, fingindo-se alheio à conversa, cortou uma fatia do segundo filé que antes nem havia tocado e levou à boca.
Como eles estavam sentados num canto do restaurante, ninguém percebeu o que se passava. O gerente, confuso, pediu licença e foi saindo, quando algo fez com que parasse. De olhos arregalados, avançou apressadamente para a mesa do grisalho e gritou:
- Gente, esse homem está se engasgando com espinhos... Será que tem algum médico aqui? Rápido... celular... alguém chame uma ambulância!!!
Tudo aconteceu em questão de segundos.
O advogado se debatia. Baba escorrendo pela boca. Como era muito branco, seu rosto já estava adquirindo a coloração de pimenta. Não conseguia falar. Apenas gemia e gesticulava, quase sem ar. Um outro cliente correu ao seu socorro. Forçou o queixo dele para baixo e abriu a sua boca violentamente. Enfiou um dedo até a sua garganta e puxou com determinação. Sangue escorria na camisa azul do homem, que nessa altura, já estava sem o paletó. O outro cliente arrancou de sua garganta um espinho do tamanho da cabeça de um dedo:
- Pronto! Dessa o senhor não morre!
Ele suava. Não conseguia dizer nada. Apenas enxugava o sangue que não parava de escorrer.
Ouviu-se na madrugada o barulho de uma ambulância parando no imenso estacionamento do restaurante. Enfermeiros e paramédicos correndo.... uma maca... vidro de soro... Agitação! E o vermelho da sirena formando imagens desastrosas nos espelhos do interior do estabelecimento.
O exigente freguês, aproveitando o tumulto, saiu de fininho.
Texto publicado no livro CONTOS DA MADRUGADA