Nunca É Tarde Pra Viver
Eu acordei e olhei em volta. Não fazia a mínima idéia de onde estava. O quarto era todo branco. Parecia um quarto de hospital. Estava me sentindo fraca e nem queria me mexer. Fiquei quieta tentando me situar.
Mais tarde a enfermeira entrou no quarto.
-Como você está se sentindo hoje, Rosa Maria?
-Estou me sentindo perdida. Nem sei onde eu estou.
-Você está numa clínica de repouso.
-Como eu vim parar aqui?
-Daqui a pouco o médico vai passar aqui e vocês conversam.
-Eu não estou e nem sou doente. O que estou fazendo aqui?
-O médico vai conversar com você. Por hora você só precisa tomar este medicamento.
-O que é isso?
-Um medicamento que o médico prescreveu.
-E se eu não quiser tomar?
-Eu vou achar que você não está bem e vou ter que relatar o fato ao médico.
Eu resolvi tomar o medicamento sem mais contestação. Não era inteligente piorar minha situação.
Tentava lembrar o que aconteceu e como fui parar naquele lugar. Não conseguia lembrar de nada e nem sabia há quanto tempo estava ali.
O médico chegou:
-Rosa Maria, boa tarde! Como você está se sentindo?
-Perdida. O que estou fazendo aqui?
-Você estava muito nervosa e estressada. Seus irmãos acharam melhor que você ficasse aqui alguns dias para um merecido repouso.
-Esta decisão não teria que partir de mim? Eu sou uma pessoa adulta e senhora de minha vida.
-Em alguns momentos da vida os nossos parentes têm que tomar decisões por nós. Até que tenhamos novamente condições de tomar a rédea da vida.
-E o que aconteceu comigo para que precisasse meus irmãos tomarem decisões por mim?
-Você estava muito nervosa e agitada.
-Tive um surto psicótico?
-Não gosto deste termo. Prefiro dizer que você estava nervosa e agitada.
-Há quanto tempo estou aqui?
-Há mais de vinte dias. E hoje pelo que vejo você está bem.
-Meus irmãos me confinaram aqui por mais de vinte dias? E quando vou poder ir embora?
-Estamos avaliando o seu quadro pra decidir quando pode voltar pra casa.
Eu estava indignada com a situação. Não acreditava que meus irmãos foram capazes de fazer isso comigo.
Eu estava prestes a completar cinquenta anos. Estava ficando cada vez mais solitária. Nunca tive um namorado. Estava me afastando de amigos e desde que minha mãe faleceu há dois anos, eu estava cada vez mais deprimida e cheia de neuroses e manias.
Agora estava ali naquela clínica e não me lembrava do acontecimento que levou meus irmãos a tomarem aquela atitude tão radical.
Eu nunca havia tido um surto psicótico e não me lembrava se tive um.
Agora estava me sentindo bem e não queria fazer nada que levasse a pensar que eu estava desequilibrada. Queria sair dali pela porta da frente e nunca mais voltar.
Dias depois os médicos e meus irmãos entraram no quarto.
Conversaram comigo, explicaram o que aconteceu para eu estar ali. Disseram que tive um surto e fiquei muito agressiva com as pessoas e até comigo mesma. Não tiveram outra alternativa senão me levar para a clínica psiquiátrica para que eu me recuperasse.
Um dos médicos então começou a falar:
-Rosa Maria, acreditamos que você está pronta pra voltar para casa, mas temos uma condição pra que você tenha alta da clínica.
-E qual é a condição?
-Que você tenha um acompanhamento com um psiquiatra e um psicólogo. Você precisa se tratar pra ter uma melhor qualidade de vida.
-Posso tentar.
-Tentar é muito pouco. Lembre que se você precisar voltar pra cá, pode não sair tão rápido como agora. Não queremos que você volte, queremos que você fique bem.
-Muito bem. Eu vou me tratar.
-Nós vamos confiar em você.
Eu voltei pra casa. Morava sozinha, não trabalhava. Por alguns dias fiquei pensando no que fazer da vida.
Comecei o tratamento com um psiquiatra e uma psicóloga. Pretendia levar o tratamento a sério. Sabia que já passava da hora de mudar minha vida.
-Fale-me de sua vida. (disse a psicóloga)
-O que quer que eu diga?
-O que quiser dizer, da infância, da adolescência, da juventude, da maturidade.
-Tem uma coisa que sempre me incomodou. Eu era uma criança muito ativa, desinibida e “arteira”. Vivia aprontando. Não sei bem como, de repente eu me tornei tímida, quieta, melancólica. Tentei parecer uma jovem normal, mas nunca tive um namorado e não era comunicativa como minhas amigas. Bebi e fumei pensado que isto era uma rebeldia que mudaria minha vida, mas não mudou nada. Nunca fiz nada de importante em minha vida. Não estudei além do ensino médio, não trabalhei, não namorei, não casei, não tive filhos. Sempre preferi ficar acomodada. Minha irmã e meus irmãos sempre tiveram suas vidas de sucesso. Casaram, tiveram filhos. E eu nunca consegui. Sempre invejei meus irmãos e amigos, mas nunca fui capaz de fazer nada por mim. Quando meu pai morreu em me senti sem chão. Depois quando minha mãe morreu, meu mundo desabou e agora estou aqui. Estou cada vez mais solitária e sem objetivos na vida. Parece que eu passo pela vida sem viver realmente. Acabei tendo um surto e fui internada. Agora eu estou disposta a mudar minha vida. Eu preciso mudar.
Durante dois anos eu me tratei sem muito sucesso. Meu psiquiatra então me encaminhou para tratamento com hipnose.
Numa sessão eu me vi com nove anos. Numa noite eu acordei e ouvi barulho no quarto de meus pais. Eu me aproximei e pela porta entreaberta vi meu pai sobre minha mãe. Parecia que ele a forçava e ela parecia chorar. Eu não entendia bem o que estava acontecendo e pensei que meu pai estava machucando minha mãe. Depois ela chorava e esbravejava, jogava objetos nele, dizia que ele nunca mais iria colocar as mãos nela, que ficasse com suas vagabundas, que ela não seria mais a mulher dele, que a partir daquele dia eles iriam dormir em quartos separados, que ela não aceitaria mais aquela situação de mulher traída e que só não se separaria dele por causa dos filhos e para não dar o que falar na sociedade conservadora daquela época. Que ele era um homem ordinário e inútil. Ele então deu uma bofetada em minha mãe e ela caiu na cama chorando.
Eu então me afastei e voltei para o meu quarto horrorizada e já em minha cama chorei baixinho.
Eu amava meu pai e estava decepcionada, estava também triste por minha mãe brigar com ele e pela situação que iriam viver.
Então já desperta eu me lembrei de tudo aquilo que meu inconsciente bloqueou para que aquela criança não sofresse ainda mais.
Lembrei então que depois daquele dia eu já não era mais a mesma e fui mudando meu comportamento. Meus pais não conversavam, não se olhavam, eram como estranhos dentro de casa. E eu que amava os dois me vi dividida. Minha mãe cobrava das filhas que ficassem do lado dela. Falava com a gente que o pai não prestava, que tudo de ruim que acontecia naquela casa era culpa dele, que ele era um inútil e que sempre deixava a família passar por dificuldades.
Mas eu amava meu pai e julgava que ele era um herói e todas aquelas acusações me deixava muito triste.
A vida seguiu e eu me tornei indiferente, quieta, sem vida e sem alegria. Não aceitava a situação em que meus pais viviam, sentia vergonha de tudo e de todos. Pensava em desaparecer, em morrer.
Agora a escola que tanto amava se tornou um fardo. Só estudava pra passar de uma série para a próxima. Não me interessava por nada. Comecei a me tornar obesa. E a cada dia se sentia mais infeliz.
Minha vida não tinha sentido nem objetivo e muito menos alegria. Eu fingia com os colegas e amigos, vivia como se estivesse tudo bem.
Nunca me dei a oportunidade de namorar, de me apaixonar. Como se julgasse que os homens eram ruins e pouco confiáveis.
Como não me lembrava do episódio que causou o trauma não entendia minha própria insatisfação.
A vida foi passando e eu fui ficando à margem. Sempre solitária. Como que para me punir me neguei a estudar, a trabalhar, a namorar. Sempre vivi de rendas do que meus pais deixaram pra mim, o que não era muito, mas eu nunca precisei de muito em minha vida medíocre. Fingia uma rebeldia que não passava de pena de mim mesma e autocensura.
Depois dessa sessão eu fiz outras e comecei a perceber que meus traumas que durante tanto tempo me atormentaram podiam ficar pra trás. Não precisava mais deixar de viver por causa deles.
Aos poucos eu fui melhorando, mudando minhas atitudes e comportamento, reduzindo os medicamentos que tomava. Sabia que uma transformação como a que eu poderia desejar não ocorreria nunca, mas a minha vida foi melhorando.
Consegui fazer algumas viagens sozinha. Conheci lugares lindos, conheci pessoas, fiz amizades.
Comecei a fazer alguns trabalhos voluntários e isso me ajudou a me sentir capaz e útil.
O psiquiatra me aconselhou a experimentar fazer algum artesanato ou desenho e eu, surpreendendo até a mim mesma, fui experimentar e me apaixonei pelo desenho e pintura. Jamais me imaginei fazendo estas atividades.
Minha vida se transformou.
Reatei algumas amizades que abandonei pelo caminho e senti o quanto eram importantes e o quanto eu perdi por ficar solitária.
Hoje, com quase setenta anos, eu vivo sozinha. Mas não solitária.
Sinto que a vida não é mais um fardo e sim uma leve cesta de bons sentimentos, talentos, doação e minha vida tem sentido.
E como o médico disse, nunca mais precisei voltar para aquela clínica.
Nunca é tarde pra viver.
(Obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é apenas coincidência)