A LADEIRA DE MARIA
Todas as manhãs Maria descia a ladeira e todas as tardes subia a ribanceira. A cidade foi construída num pé de serra. As ruas foram se formando como pernas de uma aranha-caranguejeira, com a praça da Matriz de Nossa Senhora bem no corpo da aranha brejeira. Ao longo dos anos, décadas, as casas foram subindo os morros e a caranguejeira ficou um tanto monstruosa, cheia de pernas estranhas sobressaindo de seu corpo peludo. Maria, morando no alto, descia e subia ladeira para trabalhar e voltar.
Mas Maria gostava mesmo era de dançar. Aos sábados descia o morro com alegria, pois havia música na danceteria, única de seu bairro, e dançava com pés descalços no barro do chão. E no baile conheceu João. Mancebo bonitão, cheio de galhardia, João tirou os sapatos e isso encantou Maria, que dele se enamorou. João seduziu Maria e a engravidou. Em terra de aranha, caiu na teia se mosqueia.
Maria desceu o morro, e a alegria, em princípio em jorro, logo se transformou em melancolia. Mas, música ela ainda ouvia. A ladeira não mais subia, continuava a lida tendo o filho em companhia. E o João, entre o boteco e a danceteria, chegava bêbado e ainda nela batia se encontrava a comida fria.
Resignada? Não, mas para onde seguir? Subir novamente o morro sua família não iria permitir. Comeu a fruta antes? Agora se vira com o caroço. Cada um com sua carne de pescoço.
“Mas é preciso ter manha,
é preciso ter graça,
é preciso ter sonho sempre”.
(Música de Fernando Brant e Milton Nascimento)
Assim seguia Maria. Dançava sozinha em casa quando João saia. Como ele estava sempre fora, a música do rádio acompanhava Maria em seus passos inventados como podia. E o filho? Esse crescia vendo a mãe sofrer e dançar, sua única alegria. Com ela aprendeu a trocar uns passos na sala vazia. A vida passava como barulho de ventania. A fé que a dor um dia sumiria a ajudava a viver seu dia a dia. Durante o dia trabalhar e à noite na sala dançar até seu marido voltar. Até gostava de sua ausência, à sua lida e dança não dava audiência. Quando a porta ele transpassava ela com um sorriso o aguardava e a seu lado ainda dormia.
“Quem traz na pele essa marca
possui uma estranha mania
de ter fé na vida”. (idem)
Uma briga de bar levou embora o seu João. Uma faca atravessou seu coração. Maria não chorou, nem uma lágrima derramou. No sábado seguinte, na danceteria, ela dançou com todos e com gosto, mas não queria um novo encosto, sozinha para casa voltou. Quando chegou fevereiro, Maria e seu filho foram para o Rio de Janeiro. O jovem virou passista do pandeiro e Maria abriu um terreiro onde dança até Iansã lhe baixar sorrateiro.