O ser. A pele. Um kitnet vazio.

A vida parece brincar conosco como se fossemos peças em um tabuleiro. Recuso-me a ser parte disso. Posso bancar os olhos tortos, os cochichos e as mães indignadas com minha mudança de sexo.

— Bixa pessimista—gritam em algum lugar do bar.

O útil ficou para trás. Não sabemos para onde correr. Contradições sem pretextos de mudança. Estagnação sem moral. O fluxo da autossobrevivência sufoca. O policial de que mesmo? Ou melhor, para quem? Se afastarmos nossas visões um pouco de nosso próprio umbigo conseguiremos ver que bizarro é a dinâmica de vida que o ser humano criou, perante ao tamanho da capacidade que nos foi dada, onde foi parar nosso paraíso? Olhe em volta, não vai ser difícil achar uma injustiça, assim como não é difícil achar sua cegueira.

Não existem inocentes, viemos programados para destruir, somos o câncer do mundo, o que nos resta? Talvez fazer o impossível para mudar a rota do navio que vai em rota de colisão com o muro da ignorância.

O café veio frio, foda-se, nem gosto mesmo. Ser uma fotografia romântica com a música de cabaré ao fundo basta. Sinto falta do cigarro, mesmo já não sendo politicamente correto fumar, não que eu me importe com isso, mas sim, no fundo, me importo. Maldita prisão mental que criamos. A foto é o mais importante, ali não existe dor, a máscara mais bonita vem à tona. Depois do “flash”, a cara feia volta, a barriga estufa, aceitamos as superficialidades.

Em casa vivo sozinha, não faço questão nem de bicho, nem de marido, preservo o único lugar onde posso ser eu. E quem sou eu? Um kit net caindo aos pedaços. Tomo mais uma cerveja para não perder a lombra.

No banheiro de casa respiro fundo. Tiro a maquiagem. Sem pressa. Não é fácil sair na rua assim toda montada, mas difícil mesmo é voltar para casa viva, até agora meu canivete me salvou nos momentos tensos, mas a sorte não dura para sempre. A morte me vigia pela janela, estou pronta para ela, se morro, morro no morro, fazendo o que nasci para ser.

Agora é gozar e dormir.

Acordo de ressaca e agradeço pelo dia livre, de não ter que ser como esse povo de escritório, Deus me livre. Vou dormir até tarde, viver agora não dá, me deixem.

É noite outra vez e acordo com o vizinho gritando com sua mulher, estou acostumada, não mais do que ela, mas desta vez a briga estava feia, fico atenta fingindo dormir mas fico de ouvido atento, juro que arrebento aquele maldito e esfrego minhas bolas na cara dele se ele encostar nela, infelizmente violência psicológica não é crime porque se fosse por isso, esse canalha já estava em cana. Escuto uma batida seca e logo o som de algo caindo no chão. Meu coração acelera. Pego meu canivete e saio de calcinha mesmo. Chuto a porta deles, mas não acontece como nos filmes, ela não abre. Dou um impulso maior e jogo meu corpo enorme contra ela quase deslocando meu ombro. Os dois estão no sofá, o desgraçado desfigura o rosto da mulher com socos enquanto a enforca com a outra mão. A faca entra. Respingos pintam minha mão de vermelho. Gritos. Dele e dela. Ele silencia. A mulher coloca o corpo agonizando de lado e vem para cima de mim dizendo que matei seu amor. Deixei ela me socar até a polícia chegar. Assim, mais uma preta acabou presa.

Na minha cela encontrei certos sentidos para minha vida que jamais imaginei. Vi como o ser humano pode ser cruel e violento. Meu estado emocional agora anda meio sei lá, não fico alegre por nada nem triste também, o caminho do meio foi o que eu escolhi para me manter viva neste lugar. Abandonei os picos de euforia, agora é esperar o tempo trabalhar e sair de cabeça erguida dessa merda de lugar.

A maior ilusão da cadeia é pensar que você consegue acelerar o tempo pensando que a liberdade virá correndo. No começo inventava coisas para que logo chegasse a hora de dormir. Nos sonhos era livre, tinha encontros incríveis, comia tudo que gostava, mas sempre na melhor parte o sino de despertar tocava. Começava a corrida para fazer o tempo passar. De noite tinha que ficar acordada para não ser abusada e outras que simplesmente aceitava a invasão em meu corpo. Quando fui para a ala gay tudo melhorou, ali todos se ajudavam, o problema mesmo foi o coronel Silva que não foi com a minha cara desde o primeiro dia, queria que eu chupasse ele todos os dias, era uma sopa de frustração, porrada na cara e muita humilhação. Como doía, ele dava com o punho fechado entre minhas costelas, eu perdia o ar e vomitava enquanto ele gozava no meu cabelo. Um dia não aguentei, segurei o saco dele e esmaguei suas bolas como se fossem nozes, depois deste dia ninguém mais se atreveu a se meter comigo.

Meses depois, sentada em um canto da cela onde batia o primeiro sol da manhã, no silêncio do sono dos prisioneiros, contemplei a paz. Imersa em minha respiração consciente que a monja que vinha aos domingos nos ensinava, a paz que observava em seus olhos se transformaram em meu objetivo de vida. Ali , quieta, por primeira vez a paz estava em mim.

— Ricardo Ângelo, venha comigo.

Fiquei arrepiada e tensa tentando esconder meu pavor, não lembrava de ter feito nada nos últimos dias, depois dos quinze dias na solitária já não devia nada. Não era de rezar e nem acreditava em nada além do vazio, mas naquele momento pedi para que qualquer entidade cósmica me ajudasse e que as orações da minha mãe fizessem efeito.

Entrei na sala do delegado onde ele estava sentado assinando alguns papéis. Sem olhar na minha cara me passou um papel e pediu que eu assinasse.

— Está livre, alguém pagou sua fiança.

Assinei tremendo o documento sem questionar quem tinha sido o benfeitor, em silêncio busquei sair o quanto antes para a rua, ansiosa para ver como estava o mundo 6 anos depois.

Em frente a uma loja de espelhos me assustei com a imagem que vi de mim mesma, na prisão parei de tomar meus hormônios, virei uma criatura estranha, andrógena e descuidada. Fingi um sorriso, fingi não ver os dentes podres, fingi não ver minhas cicatrizes, fingi ser o que eu tinha encontrado em meu vazio. Fui o melhor que o mundo me permitiu ser. Agora sou o presente imagético de mente sem fronteiras. Um kitnet feio por fora mas ajeitadinho por dentro.

montezyin
Enviado por montezyin em 10/08/2022
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