Concidadãos
Quando a morte chegou, ele já a estava esperando. Mas não lhe estendeu tapete vermelho. Ao contrário, estacionou o carrinho com quinquilharias ao lado da estátua do Marechal Floriano Peixoto, deitou-se de qualquer maneira e, ali mesmo, nas pedras portuguesas da Cinelândia, passou a pelejar contra a dor.
O mendigo já havia sofrido outras crises. Sabia que à tempestade sobrevinha a bonança. Mas não agora. Seu estômago, combalido, explodia em pontadas lancinantes. Eram dez da noite quando o indigente apoiou a cabeça no paralelepípedo molhado da praça. Junto à estátua inaugurada em 1910, o cinza chamuscado dos farrapos do hirsuto infeliz fazia com que ele se fundisse à paisagem basáltica.
E a morte, àquela altura, já começara a saborear sua inexorável vitória.
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Os vidros do carro estavam um pouco embaçados por causa da chuva que caíra minutos antes. No entanto, ele mal conseguia guiar. Ganhara sua atenção um telefonema que atingiu em cheio o celular. O Doutor Severo era do tipo que desfilava pela high society com desenvoltura. Havia recebido vários prêmios por suas pesquisas, no Brasil e no exterior. Acostumado às láureas de uma bem-sucedida carreira de médico, naquela noite não esperava mais do que seguir sua feliz rotina: receberia uma homenagem, na universidade do Fundão.
Entretanto, a ligação abortara a alegria e adveio um vagalhão de angústia. Uma hemorragia de sentimentos confusos, que ele temia não ter como estancar. Alheio a tudo o mais, nem reparou que, na correria rumo à Zona Sul, optara por um caminho menos usual. Descera pela Praça Mauá, até chegar à Avenida Rio Branco e, finalmente, à Cinelândia. A tensão o impedira de perceber que o veículo quase estava sem combustível. Assim que o Peugeot bebeu o último mililitro de gasolina, tratou de encostá-lo ao lado do Teatro Municipal.
Quase ninguém havia na rua. Só uma ou outra alma perdida numa noite de sábado. Naquele estado d’alma, o soberbo cirurgião mal as notava. Preocupava-se em retomar logo o caminho do Leblon. Mas os urros que vinham da estátua de Floriano detiveram-no. Num misto de ansiedade e arrependimento, pôs o celular no bolso do blazer e se dirigiu ao monumento. Antes de tudo, observou o dístico positivista, logo abaixo do número 1889: “O amor por princípio e a ordem por base, o progresso por fim”.
Ensaiou divagar, mas foi atraído pelos gritos, agora mais agudos, que vinham ali do lado. Fitou o mendigo agonizante. Era o destino o chamando ao dever. O médico e o paciente.
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Saído da esquina entre o nada e a Rua Alcindo Guanabara, Tição estava em ebulição. Menos pelos gramas de cocaína que consumira, mais porque fora acossado minutos antes por dois policiais corruptos. Surpreenderam-no nos arredores da Lapa, tomaram-lhe o revólver e ameaçaram: ou lhes trazia dinheiro, ou eles não respondiam pela integridade do crioulo — figura conhecida do comércio de drogas do Centro. Com as ruas quase desertas, o desafio do flibusteiro era encontrar uma vítima.
Atravessou a praça, ignorando a placa que remetia à Inconfidência de 1789 (“Libertas quae sera tamen” — liberdade pela qual seus antepassados por séculos ansiaram) e, ao se preparar para varar a Rio Branco, deteve-se. Se sóbrio estivesse, nem pensaria na hipótese. Mas, entorpecido, ambicionou para si os bregueços do mendigo. Nem reparou que um homem branco, de meia-idade, acocorava-se próximo ao pobre diabo.
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— Não toque nisso — ordenou o médico, sem atentar para o risco que corria. — Deixe-o em paz.
— Olha como fala, chefia — advertiu Tição, mas sem muita firmeza, desarmado que estava. — Vou levar esse troço. É pra ficar legal num lance. Fica frio que não vou tomar nada teu. Só o fedorento perdeu. Mas não te mete comigo, porque aqui não tem comédia na fita.
Com os nervos em frangalhos, Severo transbordou numa raiva incontida.
— Eu disse pra deixar o carrinho aí! — e investiu contra Tição.
Ao que o negro reagiu. Num só golpe, arremessou ao chão o distinto Doutor, que tombou ao lado do indigente. E saiu com o carrinho, na direção do Aterro — para tentar transformar a tralha em dinheiro ou para simplesmente ganhar tempo. Fosse como fosse, era certo que Tição se tratava de um cadáver insepulto. Em breve, tornar-se-ia mais um número na estatística da violência carioca: homem negro, solteiro, entre 18 e 30 anos, morto por arma de fogo.
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Já o Doutor choramingava, no cenário onde, em tempos idos, tanto se divertiu (“Cinemas, bares, teatro; aquele era outro Rio”). Refletiu que, como a cidade, degradou-se ao longo das décadas — vaidoso, esnobe.
Ela havia tentado trazer-lhe de volta à razão ultimamente. Preocupada com os rumos da cidade, exortou-o a se unir a um grupo de obra social na Rocinha. Ele, como médico, poderia ajudar. E, naquela noite, sua mulher insistiu para levá-lo à reunião.
Encastelado na auto-suficiência, não aquiesceu. Preferiu refestelar-se na reverência vazia dos bajuladores de sempre. E então o celular, alvejado por outro telefonema, servia de arauto da desgraça. Do outro lado, um bombeiro confirmava o que cerca de 40 minutos antes anunciara como sombria possibilidade: Flora estava morta, vítima de bala perdida na Av. Niemeyer.
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Na sarjeta, a sorte não distingue afortunados de despossuídos. Severo mirou o mendigo, que já dormia o sono dos mortos. Só então seu olhar se elevou até a inscrição no monumento relativa a 1822 — de autoria de José Bonifácio, Patriarca da Independência —, sob a qual jazia o indigente: “A sã política é filha da moral e da razão”. Palavras que o vento leva, apesar de supostamente gravadas para a eternidade bem ali na Cinelândia, em meio a todas as coisas e gente.