A tacacazeira
Quem vê aquela senhora, que agora é bisavó, não imagina o que ela sente. Sim, pois para os mais jovens, os velhos não sentem nada. Já viveram tudo que tinham pra viver e agora só ficam senis "com a boca escancarada e cheia de dentes, esperando a morte chegar." Seus filhos, netos e o bisneto pensam assim. Tanto que só a visitam quando a velha implora por companhia, fazendo o drama de matriarca que volta e meia funciona: "quando eu morrer, vocês tudo dão um jeito de vir."
Quando o drama não funciona, a tática usada é comida. A velha criara os três filhos vendendo comidas típicas na praça e a que mais fazia sucesso era o tacacá. Tinha gringo que até vinha de longe pra provar o famoso tacacá da tia Maria. Quando lhe perguntaram o segredo para o tacacá ser tão gostoso a ponto de ser tomado às três da tarde do dia mais quente em Belém, ela dizia: "tem segredo nenhum. É só fazer com carinho, tudo fica bom assim." Falando assim, parece clichê, mas na boca de tia Maria era verdade. Os cabelos que eram castanhos e lisos, como de seus antepassados indígenas, agora estavam brancos, mas ela carregava no olhar a pureza da menina que não deixou de ser. Basta olhar atentamente. A velha só parece ingênua agora, vivendo em outro século, com tanta tecnologia. Mas no seu tempo de tacacazeira, era muito esperta, sabia bem como cativar os clientes. Fora enganada apenas por um homem, que lhe prometeu tudo, mas quando veio a primeiro filha, ela viu que estava sozinha. O homem era um encostado, "macho frouxo" como ela mesma dizia. Vivia dando desculpa pra não trabalhar. Ficou com ele por amor, depois o amor lhe deu mais dois filhos e assim o trio e o marido viviam às custas da tia Maria, que aprendera a fazer tudo quanto era comida com a mãe, quando esta estava viva. Juntou o pouco dinheiro que tinha e começou a vender comidas típicas na praça, tudo na base do fiado. "Nesse tempo, não tinha esses estagrã, não... tudo era as pessoas que falava, vai lá na praça, com a tia Maria, que o tacacá dela é bom", dizia orgulhosa para seus netos, que estavam mais interessados no tacacá do que nas histórias da velha.
Ah, as frias tardes amazônicas de sábado... Uma vez por mês, tia Maria saía de manhã cedo depois de avisar aos filhos pelo celular (no qual orgulhamente aprendeu a mexer) que à tarde teria tacacá. Ia até a feira e escolhia todos os ingredientes com todo o esmero. Comprava os camarões graúdos com seu José, seu fornecedor fiel. O jambú e o tucupi eram com a tia Conce, que tinha o tucupi mais forte da feira toda, daqueles que o sumo fica tudo no fundo da garrafa, de tão puro. A goma pedrada era na feirinha da farinha, com um jovem que sempre lhe atendia com atenção e escutava suas histórias.
Ao voltar pra casa, dona Maria almoçava e cuidava logo de lavar e catar o jambú. As folhas e os galhos eram cuidadosamente quebrados pelas mãos ágeis da tacacazeira. Depois de lavadas, eram cozidas e reservadas. Coava a goma de tapioca pedrada, jogava na panela e fazia aquela espécie de mingau transparente. Os braços da velha tinham engrossado com o passar dos anos, de tanto bater a goma de tapioca. Ela já tinha as manhas e se orgulhava disso, mostrando os braços fortes de quem trabalhou uma vida inteira naquilo. Depois era a vez do tucupi. Ela temperava o caldo com pimentinhas, alhos e chicória. Estas últimas, a velha colhia do próprio quintal. Depois de fervido, começava a subir aquele cheiro de arder o nariz de tão forte. Preparava o molho de pimenta, os camarões e esperava a família depois de tomar um banho e se perfumar toda.
Quando eles chegavam, era maior festa. "Os meninos estão crescendo..." dizia ela para os netos mais novos e para o bisneto. A família toda reunida e enquanto todos aguardavam ansiosamente pelo tacacá, ela contava as histórias de sua juventude toda animada, feliz por ter ouvidos atentos à disposição. Quando todos iam embora, ela olhava para a casa e depois para a mesa cheia de cuias de tacacá vazias. Pensava que devia estar tão vazia quanto elas e lavava tudo antes de deitar-se para dormir.
Ela não não sabia escrever bem e tinha medo de morrer com suas histórias. Ficava pensando "e se os discípulo de Jesus fosse como eu? Quem ia escrever as coisa?" Pensava na família e por isso contava as histórias para os filhos e os netos, na esperança de que algum deles se interessasse em escrever, coisa que nunca pedia por pensar ser vaidade.
Tinha dias, em que todos terminavam o tacacá e queriam logo se ir. A velha, coitada, insistia para ficarem mais um pouco. Depois que o marido morreu, de doença feia, ela se sentia sozinha. As vezes pensava em vender comida na praça de novo, só pelo prazer de ter o que fazer, mas os braços não eram mais tão fortes pra empurrar o carrinho. E ela lamentava ter uma vida tão linda sem ter ninguém para eternizar as histórias.