O Coro da Primavera
O CORO DA PRIMAVERA
“A face alegre da Primavera se volta para o mundo,
O frio do inverno já foge, vencido,
Em vestido multicolorido, A Flora governa
Celebrada no harmonioso canto das florestas.
Ah!”
Estes são os versos iniciais de “Veris Leta Facies”, poema medieval que faz parte da obra musical “Carmina Burana”, do compositor de música clássica Carl Orff. Estou estudando obsessivamente tanto a letra quanto a melodia desta música, pois preciso urgentemente decorá-los até sábado se eu quiser ter uma chance de me apresentar no Festival da Primavera, um dos eventos culturais mais populares da região, com o Coral da minha cidade. A orquestra sinfônica está fazendo um grande teste, aberto a músicos sem experiência anterior, para escolher novos integrantes para o Coral. Se eu conseguir passar na seleção para uma das vagas de soprano, acredito que será um enorme passo no caminho para a realização do meu grande sonho: ser uma cantora profissional!
A música original é em latim, mas minha professora de canto, Madame Mimi – uma ex-cantora de ópera que veio da França em busca de um amor que não deu certo, mas que ainda assim acabou ficando por aqui mesmo -, me disse que eu tenho que traduzir e decorar todas as músicas que forem em língua estrangeira, para absorver seu significado na hora de cantar. Ela diz que se eu conseguir introjetar o sentido de cada palavra que eu estou cantando, isso vai se refletir na qualidade da minha interpretação e assim vou conseguir causar emoção no público de uma maneira muito mais natural e verdadeira.
Assim, releio os versos da primeira estrofe, tentando me concentrar. Enquanto leio o poema, fico pensando na pessoa lá na idade média que o escreveu e no que a Primavera significava pra este ser humano. Naquele tempo, não tinha ar-condicionado, não tinha supermercado, com certeza o frio era algo muito mais agressivo e ameaçador. Possivelmente, naqueles tempos, a chegada da Primavera não significava apenas um período do ano mais bonito, colorido e florido. Possivelmente, significava o fim de um período de muitas dificuldades, o fim da fome, do frio e de vários perigos. Possivelmente, significava o renascimento da vida e da esperança.
Com isso em mente, volto ao meu estudo. Tento cantar a linha de soprano da partitura, em latim. Até que sou acometida de um súbito ataque de espirros:
- Atchim! Atchim!
Perco totalmente o foco, paro tudo o que estou fazendo e procuro desesperadamente pelos meus lenços de papel! Infelizmente, para mim, a primavera não tem apenas o significado de flores, cores e risos que possivelmente tem para a maioria das pessoas. Na verdade, posso resumir o início da primavera em duas palavras nada agradáveis: RINITE ALÉRGICA! A explosão de pólen típica desta época do ano me causa coriza, coceira nos olhos e nariz entupido! Ou seja, enquanto as abelhinhas estão por aí voando felizes da vida, eu me acabo em ataques quase incontroláveis de tosse e espirros.
Dizem que Deus dá nozes a quem não tem dentes. Pois então: tudo indica que Deus me deu uma belíssima voz - que alcança notas graves e também bem agudas - um ouvido musical privilegiado - chamam de “ouvido absoluto”, que consegue adivinhar as notas que estão sendo tocadas no piano mesmo sem enxergá-las – e uma afinação bem invejável. Por outro lado, também me deu esta tal de rinite alérgica, que já tentei curar até com promessa, mas nada! Isso só pode ser uma pegadinha divina!
E justamente na semana que surge esta grande chance de fazer parte de um grupo profissional de cantores, na semana que eu mais preciso estudar canto lírico, como nunca antes estudei em toda a minha vida, eu sofro esta repentina crise de rinite alérgica, causada pela mudança de estação! O que me lembra o ditado: “Nem tudo são flores.”, “Além das flores, há também a rinite, a sinusite, a asma, a faringite, a laringite, a conjutivite...”, penso eu comigo mesma, achando tudo isso, no fim das contas, muito irônico e até um pouco engraçado.
Passada a crise de espirros, volto a me concentrar e faço um pensamento positivo. Só o que falta eu deixar uma rinitezinha de nada me desviar dos meus objetivos. Assim, respiro um pouco, tomo meu tempo e continuo meu estudo. Já que não estou conseguindo cantar direito mesmo, por ora, vou estudar novamente o poema. Talvez seja uma boa ideia passar para o estudo da segunda estrofe:
“Deitado no colo da Flora, Febo de novo ri
Agora coberto de flores multicoloridas
Zéfiro aspira a fragrância de seu néctar;
Corramos para disputar o prêmio do amor.
Ah!”
- Ah! Ah! Ah! Atchim!
Foi só o Zéfiro aspirar o néctar da primavera que meu psicológico já aspirou mais pólen! Já vejo Febo rindo da minha cara! Novamente desconcentrei totalmente do estudo! Chego a pensar em desistir de tudo, ainda mais sabendo da fama de exigente e perfeccionista do Maestro que rege o Coral. Talvez não seja o melhor momento para fazer o teste. Quem sabe ano que vem abra outra seleção. Mas aí eu penso melhor e chego a conclusão de que se eu quiser ser uma cantora de verdade preciso aproveitar todas as oportunidades que aparecerem pela frente! Com rinite ou sem rinite, preciso fazer este teste! Tenho ao menos que tentar.
Assim, me convenço que o melhor a fazer é voltar aos estudos e começo a recitar a terceira e última estrofe:
Toca em cítara um cântico o doce rouxinol
Com flores multicoloridas riem os prados serenos
Um bando de pássaros levanta vôo pela floresta amena
O coro de virgens traz deleites mil.
Ah!
Provavelmente por já estar um pouco cansada, começo a divagar sobre esta parte do poema e me deixo levar por pensamentos sem muito sentido, mas muito agradáveis. Acho que eu gostaria de ser um doce rouxinol, que vive apenas a voar e cantar, apreciando e saudando a beleza da Mãe Natureza e da Terra. Fico imaginado tudo o que os olhos dos pássaros são capazes de enxergar enquanto voam velozes riscando o céu. Talvez a minha vida fosse mais fácil, alegre e mais cheia de significado se eu tivesse nascido pássaro, se eu fosse um lindo rouxinol. Com certeza os rouxinóis não tem rinite alérgica! Além disso, já são cantores por natureza, não precisam anos e anos de estudo e treinamento. Eu definitivamente adoraria ser um rouxinol!
Neste ponto, lembro de outra lição de Madame Mimi: a de que devemos criar uma personagem para cada música que a gente for interpretar. Ela quer dizer que as palavras das músicas não são ditas por nós, ou pelos compositores, mas pela personagem, então temos que sentir o que a personagem está sentido. Eu bem que poderia pensar que esta música é cantada por um rouxinol, sentir a alegria que ele sente quando é chegada a Primavera. Ou então eu também poderia ser uma das virgens do coro ao qual o poeta se refere. Certamente é um coro divino e angelical! Seria uma honra fazer parte deste coro celestial!
Sou retirada a força dos meus devaneios pela voz de minha mãe, chamando para o lanche da tarde. Nem tanto por estar com fome, mas por estar bastante cansada de tanto estudar, atendo rapidamente ao chamado. Chego à sala de jantar e encontro uma bela mesa com algumas frutas e sucos da estação: abacaxi, avelãs, banana, castanha, laranja, maçã, mamão, manga e melão. Ela inicia amavelmente um diálogo:
- E então, querida? Como vão os estudos? Estive escutando daqui e você está cantando muito bem! Tenho certeza que o Maestro vai ficar impressionado!
As palavras de minha mãe me ajudam a visualizar meu objetivo sendo atingido! Fico pensando em como será quando for real, quando todo o meu esforço finalmente for recompensado. Nunca estive em um palco com uma orquestra antes! Não consigo nem imaginar a emoção que vou sentir! O Maestro regendo, apontando para os cantores, indicando as dinâmicas, dando o tom da interpretação! A interação com os violinos, os contrabaixos, as flautas, a percussão! Toda a cidade me olhando, prestando atenção na música, em mim! Serei praticamente uma musicista profissional!
- Minha Mamãe, querida, agradeço suas palavras de incentivo, mas preciso confessar que eu estou com medo! Você sabe o que acontece comigo no início de todas as primaveras! Imagine só se eu ficar doente do nariz ou da garganta no dia do teste? Ou então, eu posso ficar doente bem na hora do teste, na frente do Maestro, dos músicos da orquestra, dos outros cantores? Imagina só o vexame! Minha carreira vai acabar antes de começar!
Mamãe, que já conhece bem o meu lado dramático e exagerado, nem fala nada, fica apenas me olhando, esperando que eu continue a minha linha de raciocínio. E assim eu sigo a expor meus dilemas:
- Ou, pior Mamãe: já pensou que pode ser que eu passe no teste e que dê tudo certo nos ensaios, mas que na hora da apresentação eu precise ser retirada do palco por causa de um acesso incontrolável de espirros, passando a maior vergonha da minha vida? Dá pra imaginar mais uma: passo no teste, me apresento, dá tudo certo e, no final, me oferecem flores como homenagem! Aí vai ser a coisa mais ridícula do mundo quando aquele pólen invadir minhas vias respiratórias e eu sair correndo do palco, deixando todo mundo sem entender nada. Ah! Se este teste tivesse sido marcado em qualquer outra estação do ano...
Minha mãe me olha por cerca de três segundos e dispara:
- Meu amor, o primeiro obstáculo a ser vencido em direção aos nossos objetivos são as nossas próprias desculpas. Vou lhe falar bem a verdade: pode ser que essas coisas que você falou realmente aconteçam. Mas pode ser que também que nada disso aconteça. E a única maneira de você saber é tentando. Porque você não faz o seguinte? Eu sei que você não gosta de tomar o antialérgico porque ele lhe deixa muito sonolenta, mas como hoje você já estudou bastante, tome seu remedinho e tire um bom soninho. E reze antes de dormir para seu anjo da guarda lhe inspirar, que tudo vai dar certo.
Não vendo alternativa mais sensata, segui o conselho de minha mãe e fui descansar, tomando antes um chá de mel e limão com o novo remédio para rinite alérgica receitado pelo meu médico, Dr. Henrique, que me garantiu que os efeitos colaterais eram mínimos e que, se eu fizesse o tratamento direitinho, eu conseguiria cantar a plenos pulmões sem risco de crises alérgicas. Só que o remédio demora uns dez dias para fazer efeito e o teste é daqui há três dias.
Então, chegado o grande dia, lá fui eu para o tão temido teste! A decoração do palco estava repleta de flores, para minha sorte, artificiais, de modo que, aparentemente, não havia nada por perto que pudesse desencadear os meus temidos ataques de tosse ou espirro. O coro infantil, que havia terminado seu ensaio pouco minutos antes, usava fantasias que faziam referências a animais selvagens como coelhos, leões, tigres e macacos. Chega finalmente minha vez de ser ouvida pelo Maestro.
Começo a prova. No meio da canção, porém, não me controlo e solto alguns espirros:
- Atchim! Atchim!
Com os olhos vermelhos, não consigo esconder minha cara de frustração.
- Senhor Maestro, sinto ter lhe decepcionado! Acontece que, nesta época do ano, sofro muito com doenças respiratórias. Estou tomando a medicação receitada, mas pelo visto ainda não fez efeito suficiente. Peço desculpas por ter tomado seu tempo…
O Maestro me encara com olhar sisudo e fala com firmeza:
- Minha jovem, todos sabem que eu não tenho fama de tolerante, mas eu gostei da sua voz. A Senhorita parece ter potencial. Por favor, vá tomar uma água, se recupere e volte aqui para terminar sua audição.
Surpresa e animada, fiz o que o Maestro mandou. Depois de pronta, recomecei o teste e, desta vez, consegui ir até o fim! Acabei sendo aprovada em penúltimo lugar, mas o que interessa é que eu passei!
Acho que se eu pudesse resumir o significado da Primavera em uma frase, seria “O renascimento da esperança”. Pode parecer bobagem, mas no momento em que o Maestro me olhou após eu ter falhado na minha primeira tentativa, me senti quase morta, só que logo a seguir, quando ele me deu uma segunda chance, me senti mais viva do que nunca! E assim é a esperança, como as estações do ano. Nossos sonhos podem adormecer e hibernar por um bom tempo, mas eles sempre renascem, como a vida sempre renasce na Primavera!